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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(109) A destruição criativa

 

Na China, ultima-se o planeamento e a construção (e/ou aglomeração) de cidades para 130 milhões de pessoas, onde, em cada uma delas, caberá o equivalente a toda a população da Grã-Bretanha e da França juntas.

 

“Não tenho dúvida de que existe uma luta de classes, e que é a minha classe, a dos ricos, que a está a fazer e que a está a ganhar”, Warren Buffet.

 

 “Foi Reagan que nos ensinou que os défices não são importantes”, Dick Cheney.

 

A China, com o seu programa de urbanização massiva e de investimentos em infraestruturas, ocupou a dianteira do processo para salvar o capitalismo global do desastre de 2008.

 

 

 

 

Existem atualmente na China mais de 100 cidades com, pelo menos, um milhão de habitantes. O McKinsey Global Institute prevê que até 2025 o número dessas cidades duplique, dando assim credibilidade à estimativa feita pelo governo chinês que aponta para 221 cidades com mais de um milhão de habitantes.

Um dos objetivos da China é, até 2020, ter 60% da sua população a viver em cidades (a percentagem atual é de 56,1%), o que levou o Banco Mundial a estimar que em 2030, o número de pessoas a viver em cidades na China deverá ser um bilião (70% da população).

 

Esta enorme deslocação de pessoas em direção às cidades não tem precedente na história moderna chinesa. Até porque, durante décadas, a política do governo foi a de manter as populações nos seus locais de origem, contrariando a sua vinda para as cidades.

Para isso, criou até um sistema de registo de residência (hukou) pelo qual as pessoas só poderiam receber serviços de saúde, educação e outros serviços sociais, nos locais onde se encontrassem registadas, ou seja, nos seus locais de nascimento.

Essa política foi agora radicalmente alterada, com a finalidade de atrair as pessoas para as cidades, através de incentivos como o registo urbano gratuito, benefícios para aquisição de casa própria, e outros.

 

 

Como resposta às falências provocadas entre 2001 e 2007 pela bolha das ações em bolsa das empresas tecnológicas, as ‘.com’, Alan Greenspan, da Reserva Federal dos EUA, agilizou um processo através do qual o capital pudesse vir antes a ser canalizado em favor do investimento mais seguro em propriedades.

 Facilitando e embaratecendo o crédito, as compras de casas e propriedades dispararam, e o sucesso foi tão grande que, acompanhado de outros ‘oportunismos’ e aproveitamentos do costume e de outros novos, culminou com a grande crise económica de 2008, resultando em falências, percas de casas, paralisação da construção e despedimentos massivos, o que levou, naturalmente, a uma quase estagnação da procura dos bens de consumo nos EUA.

A China, cujas exportações eram muito dependentes do mercado de consumo americano, viu-se, de repente, confrontada com cerca de 30 milhões de desempregados. O governo chinês tinha rapidamente de pôr esses desempregados a trabalhar ou arriscava-se a ter de lidar com uma enorme agitação social.

 

O que fez o governo chinês?

 

Um enorme programa de investimentos em infraestruturas visando ligar as grandes zonas industriais da costa com o interior subdesenvolvido, melhorar a conetividade dos mercados do Sul com os do Norte, e ainda, um outro enorme programa de urbanização forçada, construindo novas cidades, expandindo e reconstruindo as outras.

 

Nada que, em tempos de crise, não tivesse sido já feito antes no chamado Ocidente. Os casos mais emblemáticos são o de Paris, com Napoleão III em 1852, para resolver a crise de desemprego e de reconstrução da cidade após a revolução de 1848, e o dos EUA após o fim da 2ª Guerra em 1945 (devido ao regresso em massa de soldados desmobilizados, sem emprego e sem casa para habitar), com a criação dos subúrbios habitacionais e das regiões metropolitanas das cidades mais importantes, e com a construção do sistema interestadual de autoestradas que permitiu a integração do Sul e do Oeste na economia nacional.

 

Em qualquer dos casos o objetivo era de, através da utilização dos excedentes de capital e de trabalho, garantir um relativo estado de emprego, assegurando assim a estabilidade social.

 

Nesse sentido, e no curto prazo, o plano da China também resultou plenamente, controlando a catastrófica crise social iminente. E, de tal maneira o fez que, um ano depois, em 2009, já os relatórios do Fundo Monetário Internacional e da Organização Internacional do Trabalho, indicavam que o número de trabalhadores desempregados, como resultado da crise de 2008, era de apenas 3 milhões, o que significava que num só ano o governo chinês conseguiu criar 27 milhões de empregos, o que é notável.

 

Segundo o United States Geological Survey, a China consumiu entre 2011 e 2013, 6.651 milhões de toneladas de cimento em doze anos. Note-se que os EUA, entre 1900 e 1999, consumiram 4.405 milhões de toneladas em cem anos, número que já era considerado elevado.

Se, a isto acrescentarmos o cobre consumido (60% da produção mundial),  os lingotes de ferro (50%), e ainda o impacto que a sua procura de matérias primas teve no rápido crescimento dos países (Austrália, Chile, Brasil, Argentina, Equador …) fornecedores de minerais, óleo, produtos agrícolas (madeira, soja, algodão, etc.), e nos fornecedores de maquinaria de alta qualidade (Alemanha), é caso para se poder afirmar que a China, com o seu programa de urbanização massiva e investimentos em infraestruturas, esteve na dianteira do processo para salvar o capitalismo global do desastre de 2008.

 

Como o conseguiu fazer?

 

Financiando o défice. O governo deu ordens aos bancos para emprestarem sem olhar aos riscos, e instruiu os municípios e restantes administrações regionais para maximizarem todas as iniciativas que visassem o desenvolvimento. O que, evidentemente, resultou num aumento espetacular da dívida pública.

 A dívida da China relativamente ao PIB, é hoje das mais altas do mundo. Só que, ao contrário de países como a Grécia, a dívida é em moeda chinesa (renminbis) e não em dólares ou euros. Acontece também que o Banco Central da China tem enormes quantidades de reservas em divisas estrangeiras de forma a cobrir a dívida, e que, além disso, pode ainda imprimir o seu próprio dinheiro.

Ou seja, a China está certamente de acordo com a visão de Ronald Reagan quando dizia que o défice e as dívidas não interessavam.

 

Claro que, mais lá para a frente, tal como aconteceu em Paris em 1867, nos EUA nos finais dos anos sessenta e em Nova Iorque em 1975, só para citar casos paradigmáticos, acabou por aparecer o problema do sobre investimento.

A aplicação massiva de capital fixo de investimento que deveria ter conduzido a um aumento de produtividade e eficiência, não produziu esse desejado efeito: o crescimento da China abrandou, o que teve consequências desastrosas para as economias do Brasil, Chile, Argentina, Austrália, etc.

A partir de 2014, a maior parte das municipalidades estavam falidas, o sistema bancário, que tinha crescido enormemente sobre bases falsas, comportava-se tal como se fosse um casino, as propriedades começaram a desvalorizarem-se por falta de compradores. De novo o espectro da agitação social.

 

E o que fez desta vez o governo chinês?

 

Pois exatamente o mesmo que já tinha feito antes, um novo programa financiado pelo défice a fim de absorver os excedentes de capital e de trabalho, só que agora numa escala muito maior por forma a afastar o espetro de uma nova agitação social para um futuro muito mais longínquo.

 É aqui que encaixa o planeamento e a construção (e/ou aglomeração) de cidades para 130 milhões de pessoas, num projeto que equivale a ter cidades onde, em cada uma delas, caberá toda a população da Grã-Bretanha e da França juntas.

 

Mas, o governo chinês sabe que este projeto de urbanização não é só por si o suficiente para lhe garantir estabilidade no futuro. Sabe que tem de procurar para lá das suas fronteiras uma forma para absorver mais excedentes de capital e trabalho.

É aqui que entra o famoso projeto de construção da “Rota da Seda” (ligação da China à Europa atravessando a Ásia Central), e de outros enormes projetos idênticos de transportes lançados na América do Sul e África, bem como o da construção do novo canal de ligação do Atlântico ao Pacífico, em execução na Nicarágua.

 

 

Para além dos rebuçados das vantagens que o viver em cidades de 130 milhões de pessoas trará (e atenção, este projeto não é só exclusivo da China, porquanto existem já programas similares de urbanização nos Estados do Golfo e na Turquia, que pretende converter Istambul numa cidade de 45 milhões, tendo já iniciado um vasto programa de urbanizações no lado norte do Bósforo), como sejam melhores redes de transportes, melhores redes de comunicação, melhores espetáculos, melhores facilidades para se arranjar emprego, melhores tudo e melhores etc., certamente que a vida nessas cidades será mais espiada, mais controlada, mais policiada, mais militarizada, como os ‘cidadãos’ têm sido ensinados a desejar para sua proteção e segurança, como convém para manter a civilização na senda do progresso.

Não há programa que contemple os 30% que ficarem fora dessas megacidades. Mas isso será, evidentemente, o problema desses 30%. O que, já de si, é o programa.

 

As inovações tecnológicas acarretam sempre um enorme impacto nas relações sociais. Por exemplo, a introdução da máquina a vapor, veio permitir libertar a indústria da dependência obrigatória da sua localização geográfica só em determinadas regiões, possibilitando assim uma maior concentração da produção em centros urbanos.

Se repararmos bem, não deixaremos de notar que a aglomeração da produção (da população e das forças produtivas) em alguns poucos grandes centros urbanos, foi sempre uma tendência inerente ao modo de produção adotado pela sociedade.

 Esta organização racional da produção em grandes centros foi fundamental para reduzir os tempos de execução e os custos dentro do processo contínuo da circulação do capital (o dinheiro é usado para comprar força de trabalho e meios de produção, que, quando transformados pela produção, permite que um novo produto seja lançado no mercado por troca com o dinheiro inicialmente despendido acrescido de um lucro).

 

 

O que é verdadeiramente importante de entender, nesta que nos querem fazer aparecer como a grande epopeia do futuro, é saber a razão porque tem ela de ser feita. E a resposta não é nova: porque tal é necessário para a reprodução da acumulação do capital. Se se parar essa acumulação, dar-se-á a total falência do sistema.

 

Vivemos hoje num mundo hegemonicamente capitalista, o que significa que a nossa sociedade é caraterizada pela existência de uma classe de capitalistas (privados ou fazendo parte do Estado) que organizam e comandam o processo de trabalho com a finalidade de obterem lucro, e pelos que fazem parte desse processo de trabalho que aceitam como seus próprios os valores da classe dos capitalistas.

Curiosamente, nem os capitalistas gostam hoje de serem assim chamados (preferem ser conhecidos incorretamente como “classe dos ricos”, como “empreendedores de sucesso”, “classe dos 1%”, etc.), nem o sistema gosta de ser chamado de capitalista (prefere ser conhecido apenas como “sistema económico”, como “a economia”, melhor ainda até não ser sequer referido).

 

Muito basicamente e muito esquematicamente: como o lucro se obtém com o domínio do trabalho pelo capital, então a classe de capitalistas, para se poder manter e reproduzir-se a si própria, terá de expandir continuadamente a sua base de lucro (a esta expansão continuada do seu lucro, chamam “crescimento económico”).

Daqui resulta o conceito de “acumulação pela acumulação”, de “produção pela produção”, que é o princípio em que a nossa sociedade está fundada. A acumulação, é o meio que a classe capitalista utiliza para se reproduzir a si mesma e para continuar a sua dominação sobre o trabalho.

 

  É por isto que a acumulação não pode ser isolada da luta de classes, como notou, entre outros, o insuspeito e multibilionário de referência, Warren Buffet:

 

“Não tenho dúvida de que existe uma luta de classes, e que é a minha classe, a dos ricos, que a está a fazer e que a está a ganhar”.

 

 

É esta autoimposição vital de “acumulação por acumulação”, de “produção por produção”, que nos permite entender melhor porque temos vivido, e continuaremos a viver, em tempos em que o abandono, a falência e destruição de empresas, cidades, meios ambientes, populações, se sucedem a um ritmo cada vez mais elevado, vindo algumas delas, incluindo as próprias pessoas, a serem substituídas por outras mais de acordo com o desenvolvimento pretendido.

 

Para definir este processo de destruição conforme as suas conveniências, utiliza-se até um termo muito interessante e que fica muito bem nos relatórios especializados e nos media. Chamam-lhe “destruição criativa”.

 

Poderá até acontecer que o sistema económico-político-económico contemporâneo consiga fazer com que a reprodução do capital possa vir a ser alcançada por quaisquer outros meios menos violentos e destrutivos. Mas, seria bom que, em vez de nos condicionarem e condenarem à inevitabilidade dessa “destruição criativa”, nos explicassem antes quais poderiam ser esses outros meios menos violentos e destrutivos. Para podermos decidir em conjunto. Democraticamente. Aguardemos, sentados.

 

 

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