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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(417) Quero lá saber do futuro!

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

Para Paulo Orósio, a finalidade da história faz-se em função de um sentido final: a vitória do Cristianismo e a redenção da humanidade por Cristo.

 

A história dos factos futuros é tão ou mais real que a dos factos passados.

 

Não parece haver uma razão clara para se aceitar que a ordem causal seja concordante com a ordem temporal, permitindo assim que uma causa possa ser temporalmente posterior ao seu efeito.

 

Se fosse possível transmitir uma mensagem a uma velocidade superior à da luz, ela poderia chegar antes de ser transmitida.

 

 

 

 

Numa noite de fevereiro de 1979, José Mário Branco, escreveu aquela que é talvez uma das mais conseguidas canções de intervenção, “FMI, onde ativamente clama pelo presente como estado de vida sempre adiado devido a ser permanentemente hipotecado ao futuro, seja ele qual for:

 

Sempre a merda do futuro! Que se lixe o futuro!”

 

Ao admitirmos o princípio da causalidade como esteio para a racionalidade de que tanto nos orgulhamos transformando-o em lei de toda a Natureza a que ninguém escapa desde sempre (note-se que a primeira noção desta relação de causalidade é dita acontecer assim que o bebé chora e esse choro tiver uma resposta – o colo e o conforto de quem dele cuida, o que faz com que o cérebro do bebé comece a compreender que o acontecimento A – chorar – tem uma resposta B – conforto, permitindo com isso o desenvolvimento das suas competências cognitivas), garantimos não só que há sempre uma razão (causa) para o que acontece, como ainda asseguramos a existência de um futuro para além do presente (consequência de causas passadas).

 

Seguindo esta linha ‘natural’ de desenvolvimento, Paulo Orósio, a pedido de Santo Agostinho, vai escrever (entre 416 e 417) a primeira história universal feita por um autor cristão, A História contra os Pagãos, onde todos os factos temporais se encaminham para um ponto comum (providencialismo) e em que a finalidade da história é a instauração do reino de Deus (messianismo).

A sua originalidade foi o de encontrar um princípio unitário absoluto para onde todos os acontecimentos históricos são conduzidos, para a partir daí os explicar. A finalidade da história faz-se em função de um sentido final: a vitória do Cristianismo e a redenção da humanidade por Cristo.

Por isso, para Orósio, a visão do futuro é sempre otimista, porque é aí que se situa a redenção da humanidade por Cristo. Como diz: “O futuro é sempre melhor”. O futuro tem, pois, um papel fundamental.

 

Indo mais além, em 1597 e em 1609 aparecem os dois primeiros volumes da Monarquia Lusitana de Frei Bernardo de Brito, que vão ‘demonstrar’ que a fundação do reino de Portugal era de origem divina e que o povo português estaria predestinado a defender a fé católica.

Ou seja, para Frei Bernardo, a meta da história era a fundação de Portugal e a sua predestinação, substituindo e reduzindo assim a referência essencial de Orósio à história universal pela referência à história particular. É que para Orósio, a meta da história era a instauração de um reino de Deus, mas com referência à história universal.

Para valorizar a lenda, o mito e a profecia, Frei Bernardo de Brito vai deslocar a história, dando particular ênfase à finalidade a alcançar. E é esta finalidade que vai por si constituir a razão para a inteligibilidade do passado. Só poderemos conhecer o passado e o presente, se possuirmos o conhecimento das causas finais dos acontecimentos. Se tivéssemos o conhecimento de todas as causas finais, teríamos o conhecimento total do passado, presente e futuro.

Poderemos inclusivamente absolutizar a causa final ao ponto de retirarmos da história tudo o que não faça parte dessa causa final. Ou seja, poderíamos escrever a história baseada só na causa final, o que seria uma história do futuro, e isto porque sendo a causa final sempre relacionada com o ponto de vista divino, então será sempre muito mais verdadeira e universal que a história que se faça do passado ou do presente. A história dos factos futuros é tão ou mais real que a dos factos passados, sendo justificada pelo Divino.

Daí que a profecia (rutura com o presente) passe a ser uma mera antecipação do futuro, um texto aberto à história, interpretando os factos proféticos como factos que se darão necessariamente. É o que faz o Padre António Vieira (1608 – 1697) quando escreve a sua História do Futuro.

 

Acontece que em 2022 foi atribuído o Nobel da física a três cientistas (um francês, um americano e um austríaco) sobre experiências efetuadas no campo da mecânica quântica que sugerem, entre outros, que o futuro pode influenciar o passado, ou seja, ações do presente podem afetar acontecimentos passados.

Embora esta “retro causalidade”, ou “causalidade invertida”, possa suscitar problemas desconcertantes, parece não haver uma razão clara para se aceitar que a ordem causal seja concordante com a ordem temporal, permitindo assim que uma causa possa ser temporalmente posterior ao seu efeito.

 

No universo em que vivemos só poderemos influenciar os objetos que pudermos tocar diretamente (ou indiretamente por um encadeado de acontecimentos, como através de eletricidade ou de ondas rádio), o que faz com que as narrativas completas (causalidade) do nosso mundo físico possam ser feitas pela descrição, unidade a unidade, dos mais pequenos e elementares constituintes físicos.

Contudo, a Mecânica Quântica veio revelar-nos a possibilidade da existência de pares de partículas que se movimentam sincronizadamente à distância sem necessidade de qualquer intermediário, como se estivessem ligadas por telepatia (“gémeas telepáticas”).

Se uma das partículas do par for perturbada – como por exemplo ao tentar ser medida ou ao ser simplesmente observada  -  a outra “sente” essa perturbação instantaneamente e reage, mesmo que estejam separadas por anos-luz.

O facto da transmissão entre essas partículas se fazer instantaneamente para além de ser contraintuitiva, põe um enorme problema à teoria da relatividade especial de Einstein que tem por base a velocidade da luz como limite.

Não é de admirar que Einstein tenha chamado a essa interação de “ação à distância fantasmagórica”. Por isso, enquanto não se conseguisse ter uma explicação física sobre como isso acontecia, a mecânica quântica seria de certa forma, considerada uma “ciência incompleta” (“Can Quantum-Mechanical Description of Physical Reality Be Considered Complete?”, de Einstein, Podolsky e Rosen, o chamado  paradoxo EPR,1935). Para Einstein e companheiros, a propriedade a ser medida tem de estar presente (ainda que “escondida”) no objeto e tem de poder ser determinada com certeza.

Tudo isto fez com que durante anos a mecânica quântica permanecesse como que num limbo (o tal problema do “paradigma” da comunidade científica), até que trinta anos depois, em 1964, o irlandês John Stewart Bell, tentou esclarecer as dúvidas que se punham, dando forma matemática a um teorema com base na pergunta: será que as coisas que existem sem serem observadas terão que necessariamente estabelecerem entre si aquela fantasmagórica ação à distância?

Os testes para validação do teorema só foram possíveis a partir de 1972 quando se conseguiram manipular experimentalmente fotões. Os resultados vieram, contrariamente ao que se supunha, concluir que afinal a natureza é “fantasmagórica”. Os fundamentos da mecânica quântica passavam definitivamente do campo da imaginação filosófica para o da física experimental.

Essas experiências e desenvolvimentos tecnológicos posteriores permitiram estudar isoladamente entidades quânticas (átomo, eletrão, fotão, etc.) iniciando a área de informação quântica, abrangendo o estudo da criptografia quântica (que irá permitir a segurança absoluta dos dados) e de computadores quânticos extremamente velozes.

 

As dúvidas entre a comunidade científica continuam a permanecer hoje, sendo a mecânica quântica extremamente complicada de explicar em termos simples, mesmo para quem tenha conhecimentos avançados de matemática e física como se vê pela enorme quantidade de estudos inconclusivos. Mas a prática e os avanços tecnológicos aí estão para a demonstrar.

 

Segundo a relatividade especial, a transmissão de mensagens a uma velocidade maior que a da luz, é uma impossibilidade. Mas se tal fosse possível, isso significaria que uma mensagem transmitida a uma velocidade superior à da luz poderia chegar antes de ser transmitida.

Uma das últimas teorias do matemático Roderich Tumulka vai introduzir esse conceito “fantasmagórico” da mecânica quântica não somente para o espaço, mas também para o tempo. Para se usar esta teoria para determinar as probabilidades do que vai acontecer a seguir, teremos de levar em consideração não só no estado físico corrente do mundo, mas também certos factos acerca do passado.

A junção da arquitetura geométrica do espaço/tempo do universo oriunda da relatividade específica que está limitada à velocidade da luz com os fenómenos da mecânica quântica, acabará por acontecer, tornando a história física do mundo infinitamente mais rica. Mas com que configuração? Os estudos continuam. Os computadores quânticos dirão.

 

Mas de tudo isto que a ciência ainda tateia e que alguns receiam que os humanos não estão preparados para aceitar, seria interessante lembrar, por exemplo, que quando acontece um desastre com algumas vítimas, em que os familiares só no dia seguinte têm conhecimento, na dúvida, muitos deles pedem ao Céu que não tenha sido um dos seus que tenha morrido, que tenha sido poupado à morte. Ou seja, pedem uma intervenção divina, acreditando que ela possa alterar o que já aconteceu para evitar que tal aconteça.

(416) Ciclos da outra matéria negra

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

O ciclo da fome devora os homens e os caranguejos todos atolados na lama, Josué de Castro.

 

O ciclo da merda de Saló ou os 120 dias de Sodoma, P. Pasolini.

 

Cada ser humano expele em média meio quilo por dia

 

Como não voltamos a enviar os nossos excrementos para os sítios de onde vem a nossa comida, vamos perpetuando a incorreta redistribuição de nutrientes no planeta.

 

A quem pertencem os excrementos de uma família que vive numa casa alugada: aos inquilinos ou aos donos da casa?

 

Empreendedores e unicórnios: a merda espera por vós.

 

 

 

Começo por relembrar o que Josué de Castro disse no seu transversal e irredutível livro O Ciclo do Caranguejo, acerca da circularidade nos mangais do Recife entre vida, morte, fome, comida, homem e animal:

Se a terra foi feita para o homem com tudo para bem servi-lo, o mangue foi feito essencialmente para o caranguejo. Tudo aí é, ou está para ser caranguejo, inclusive a lama e o homem que vive nela. A lama misturada com urina, excremento e outros resíduos que a maré traz, quando ainda não é caranguejo vai ser. O caranguejo nasce nela, vive dela, cresce comendo lama, engordando com as porcarias dela, fabricando com a lama a carninha branca de suas patas e a geleia esverdeada de suas vísceras pegajosas. Por outro lado, o povo daí vive de pegar caranguejo, chupar-lhe as patas, comer e lamber os seus cascos até que fiquem limpos como um copo e com sua carne feita de lama fazer a carne do seu corpo e a do corpo de seus filhos. São duzentos mil indivíduos, duzentos mil cidadãos feitos de carne de caranguejos. O que o organismo rejeita volta como detrito para a lama do mangue para virar caranguejo outra vez.

Nesta aparente placidez do charco desenrola-se trágico e silencioso o ciclo do caranguejo. O ciclo da fome devorando os homens e os caranguejos todos atolados na lama”.

 

Em 1975, Pier Paolo Pasolini, realiza o filme “Saló ou os 120 dias de Sodoma”, baseado no romance de Sade mas tendo como pano de fundo a última república fascista de Mussolini em Saló (1943-45) com as suas quatro figuras importantes: um Duque, representando o poder da nobreza, um Monsenhor, representando o poder da Igreja, um Magistrado, representando o poder judicial, e o Presidente do Banco Central, representando o poder económico. Aprisionam no castelo oito rapazes e oito raparigas durante 120 dias, com a intenção de abusar deles de todas as formas: violam-nos, torturam-nos, obrigam-nos a comer fezes.

O filme divide-se em quatro ciclos: o ante inferno, o ciclo das manias, o ciclo da merda (em que o jantar é constituído por excrementos dos próprios prisioneiros) e o ciclo do sangue. A não perder.

 

Por dia, em média, cada humano adulto produz meio quilo de outra matéria negra (caca, cocó, fezes, merda) que não aquela que os físicos investigam. Com 8 milhões de habitantes, a cidade de Nova Iorque produz mais de 4 milhões de quilos, 4 toneladas de merda por dia. Pequim, a capital da China, com os seus 21,3 milhões de habitantes, produz 10,6 milhões de quilos, 10,6 toneladas, por dia. Se multiplicarmos por 365 dias, é de espantar como não nos afundamos em merda.

E o que fazemos com esta merda toda? De imediato, tentamos fugir dela o mais possível, dependendo do sítio onde vivemos. Se vivermos num apartamento na cidade, expulsamo-la pela sanita abaixo. Se vivermos noutros locais, deixamo-la decompor em latrinas abertas ou à superfície debaixo de árvores. Ou seja, fazemos sempre o possível para que ela seja deixada, ou vá para o mais longe possível da nossa vista e cheiro. É coisa de que se não gosta.

Se vivêssemos no campo como os nossos antepassados nómadas, o problema estava resolvido: a quando das suas curtas paragens, depositavam a carga e seguiam viagem. Mas assim que começamos a sedentarizar e a cultivar, já não podíamos aliviar a carga onde quer que fosse: fazíamo-lo em covas ou no rio. Lá se foi a liberdade.

Na não muito distante e civilizada Roma apareceram os assentos nas cagadeiras comunais onde a água corrente empurrava continuamente os dejetos para fora dos muros da cidade. Na Idade Média, os detritos das latrinas eram posteriormente acumulados em depósitos e barris que depois eram selados e enterrados.

Mas com o aumento do número de cidades, o vazar dos dejetos para os cursos de água revelou-se desastroso: os poluidores a montante inquinavam as águas a jusante, originando surtos de doenças. Foi assim que se originaram as grandes pandemias de cólera na Europa do século XIX e início do século XX.

Ainda hoje no chamado mundo desenvolvido, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, adoecem e morrem cerca de 827.000 pessoas por ano com infeções provenientes de doenças ligadas à diarreia, mais de 494 milhões ainda defecam ao ar livre, por exemplo, nas sarjetas das ruas, atrás de arbustos ou em cursos de água abertos, e mais de 1,7 bilião de pessoas não contam com serviços de saneamento básico, como banheiros ou latrinas.

Neste nosso mundo civilizado, para nos vermos livres dessa enorme quantidade de excrementos, contruímos sanitas, canalizações subterrâneas e gigantescas estações de tratamento de dejetos. E quando julgávamos que tínhamos o problema resolvido, verificamos que essas maravilhas da engenharia moderna estão a estragar a ecologia da Terra.

E isto simplesmente porque não resolve aquilo que é o principal problema: o da redistribuição de nutrientes no planeta. Explicando resumidamente: sempre que comemos bananas, maçãs, alface, milho, arroz, etc., tudo isso cresceu noutra parte do planeta, de onde foram retirados os nutrientes para que se criassem esses cultivos.

Ou seja, quando excretamos aquilo que comemos, não o fazemos no mesmo local de onde vieram esses produtos, pelo que não repomos os nutrientes no local de onde os tiramos: mandamo-los pela sanita abaixo.

Mais: as nossas estações de tratamento retiram os patogénicos da água, mas deixam o fósforo, o potássio e o azoto, fertilizantes potentes que irão escorrer para os cursos de água vizinhos, lagos e oceanos. Daí resultarão algas tóxicas, peixes mortos e águas impróprias que não foram feitas para absorver tanto fertilizante químico.

Como nós não voltamos a enviar os nossos excrementos para os sítios de onde vem a nossa comida (via marítima, aérea ou terrestre), vamos assim perpetuando a incorreta redistribuição de nutrientes no planeta.

Substituindo a nossa caca por fertilizantes sintéticos que nunca são tão bons, estamos ainda por cima a poluir mais o planeta devido aos componentes tóxicos associados à sua produção. Ou seja, ao retirarmos a nossa caca da equação alteramos não apenas a nossa agricultura, mas a ecologia total do planeta.

 

Em algumas sociedades e em certos períodos, esta reposição chegou até a ser decretada, como em 1737 pelo imperador da dinastia Qing na China, obrigando todos os súbditos a colocarem à porta das casas um bacio com os seus excrementos que seriam recolhidos diariamente pela madrugada, como explica Donald Worster  no seu estudo “The Good Muck: Toward an Excremental History of China”. Excrementos que eram depois vendidos, após serem secos e separados. Ouro malcheiroso, mas ouro.

Os japoneses foram ainda mais longe, como por exemplo quando regulamentam sobre a decisão de saber a quem pertenciam os excrementos no caso de uma família viver numa casa alugada: aos inquilinos ou aos donos da casa? Nesse Japão pré-industrial de 1724, a merda pertencia aos proprietários. Época em que o roubo da merda dava direito a prisão.

Sabendo tudo isto, não parece viável na sociedade atual que se passe a por o penico à porta para que os serviços camarários procedam à sua recolha e distribuição, mesmo que tal seja feito por uma firma privada. E mesmo se for possível, serão depois as estações de recolha e tratamento quem vai reencaminhar para a sua origem os excrementos tratados para assim se estabelecer a desejada “agricultura circular”? O corrupio que aí iria por esse país acima e abaixo.

 

Mas já há algumas propostas comerciais em utilização, como a da Loowatt, empresa com centro em Londres e operando em Madagáscar: o interior da sanita é revestido por uma película que captura a matéria humana desejada, fecha-a hermeticamente e recolhe-a por baixo da sanita. Enviada depois para estações de bio gestão, transforma-se em composto e em biogás. A SOIL Haiti segue o mesmo processo no Haiti.

A empresa canadiana Lystek que opera já em 50 regiões (Washington, DC, Boston) encarrega-se de transformar, em gigantescas misturadoras e cilindros de pressão,  todas as recolhas numa massa que originará metano e uma pasta que será seca e armazenada em pacotes a serem vendidos nas lojas.

A israelita HomeBiogas dedicou-se a famílias que vivam fora das redes e onde o custo da energia é elevado: são pequenos biodigestores de plástico durável que convertem qualquer excremento orgânico em biogás e fertilizante líquido. A Epiccleantec de S. Francisco regenera todos os líquidos, tornando-os aptos para a lavagem de roupa, água da sanita e rega de plantas.

Com tantas opções e outra mais que se lhe seguirão, parece que o problema é agora apenas psicológico: contrariamente ás sociedades antigas que lidavam com a porcaria, o sujo e com os excrementos de maneira natural, e que inclusivamente reconheciam neles um valor de uso até muito versátil, nós gastamos dinheiro esforçando-nos a remover para o mais longe possível esse superproduto do nosso próprio metabolismo. Ora aqui está uma meta a alcançar por cada um de nós neste século XXI:

Ponha a caca no Merdalhão Verde. Não contribua para o aumento das doenças mentais.

 

Atenção empreendedores e unicórnios: a merda espera por vós.

 

 

Notas:

Blog escrito com base no livro de Lina Zeldovich,  The Other Dark Matter, the Science and business of Turning Waste into Wealth and Health.

De assunto relacionado, sugiro o blog de 4 de novembro de 2015 “Da merda e seus companheiros”, o de 23 de setembro de 2015 “Os Corn flakes e a masturbação” e o de 14 de novembro de 2018 “O ato cultural de limpar o rabo”.

 

 

 

(415) A hegemonia americana não aconteceu

Tempo estimado de leitura: 11 minutos.

 

O Plano Estratégico dos EUA implica assegurar que os rivais não se desenvolvam, The New York Times, 8 de março de 1992.

 

Esse Plano Estratégico defende um mundo dominado por uma superpotência cuja posição pode ser perpetuada por comportamento construtivo e poderio militar suficiente para impedir qualquer nação ou grupo de nações de desafiar a primazia americana.

 

Everything south of the Mexican border is America’s front yard, Presidente Biden.

 

 

 

 

Há duas curtas citações que me parecem importantes para início do tema. Uma de Harold Pinter, a propósito de se viver num tempo em que a mentira é a norma e em que os interesses políticos e económicos se disfarçam por baixo das causas mais nobres e inocentes:

 

 “Nunca aconteceu nada. Mesmo quando estava a acontecer, não estava a acontecer. Não tinha importância. Não tinha interesse …” (1)

 

Outra, do  filósofo italiano Antonio Negri (1933 -), um dos primeiros a definir e identificar o conceito de Império (2000) como uma nova forma de soberania, distinta do imperialismo, pelo facto de não estabelecer nenhum centro de poder e por não se sustentar em fronteiras ou barreiras fixas, o que faz com que o seu domínio não tenha limites, e ainda por se apresentar como um regime histórico que não se origina pela conquista.

Tem ainda características como a de dominar e operar em todos os registos da ordem social, penetrando até ao mais profundo do mundo social. Não só regula as interações humanas, como ainda procura governar diretamente toda a natureza humana:

 

 “O império não só governa um território e uma população, com também cria o mundo que habita.” (2)

 

Adiante:

Uma das coisas interessantes sobre o filme de Orson Welles de 1941, Citizen Kane, foi o título que lhe foi dado em português: “O Mundo a Seus Pés”. Como sabem, o filme, para além daquelas inovações técnico-estéticas que os nossos amigos cinéfilos muito gostam de apreciar-comentar, relatava a história de um magnata da comunicação social que quase chegou a ser dono de tudo exceto do amor que sempre lhe escapou.

Bem sei que a tradução literal como “Cidadão Kane”, seria incompreensível na altura, e mesmo com um salto de dezenas de anos para a atualidade não teria o efeito desejado, pois provavelmente alguém ainda pensaria tratar-se de um filme sobre o jogador de futebol do Tottenham. “Dono disto tudo” talvez fosse jornalística e politicamente mais compatível. Creio, contudo, que nestes tempos atuais de gerações “as mais bem preparadas” (o que isto quer dizer é outra história), não duvido que o título original, Citizen Kane, seria hoje o mais aceite e compreendido. E isto foi a primeira lição em hegemonia.

 

Quando Pôncio Pilatos resolveu lavar as mãos sobre o pedido das forças políticas-religiosas- endinheiradas da região da Judeia para que julgasse Cristo, mais não fez do que afirmar o que era a hegemonia de Roma sobre uma insignificante colónia que só lhe interessava para o recebimento de impostos, o que efetivamente não era aquele caso do possível aparecimento de mais uma religião de que o tão império romano tinha em abundância e que ainda por cima até proclamava que se devia dar “a César o que é de César”. Lavar as mãos como símbolo da hegemonia sobre um povo, um território, uma religião. Lição segunda.

 

Quando a Igreja Católica resolveu suspender a realização da missa em latim, estava simultaneamente a dar uma indicação de perca de hegemonia (as suas leituras não eram já possíveis de serem apreciadas-impostas) e de permanência hegemónica de Roma, não da Igreja, mas do Império (ao reverter para as línguas romanas locais). Lição terceira.

 

Quando o Reino Unido dominava o mundo através do seu Império Britânico e das suas Companhias, e os seus súbditos se passeavam intocáveis (eles sim os verdadeiros intocáveis que não os indianos) porque a qualquer interferência ou pequeno revés a Marinha britânica era convocada para obrigar à vassalagem quem quer que fosse e em qualquer lugar, isso sim era verdadeira hegemonia como até hoje nunca os americanos conseguiram. Hegemonia perdida já há uns tempos, não sei se esses súbditos notaram, mas que atinge hoje a conclusão final quando o Rei Carlos convida para a sua cerimónia de coroação artistas seus súditos (Elton, Adele e Harry Styles, Ed Sheeran, Robbie Williams e Spice Girls) e estes publicamente recusam. Lição quarta.

 

Quanto aos americanos, também desde muito cedo têm os seus governos sempre intentado conseguir a hegemonia mundial, como se pode esquematicamente  ver através das várias atitudes e declarações feitas ao longo do tempo.

Começando logo em 1823 com a célebre “Doutrina Monroe segundo a qual se pretendeu opor ao colonialismo europeu no hemisfério ocidental (o problema de Espanha no México), sua ampliação posterior para cobrir a anexação do Havai (nenhuma nação europeia deveria interferir com a expansão americana), o “Corolário Roosevelt” de 1904 assegurando o direito dos EUA intervirem militarmente em todos os casos da América Latina (“polícias do hemisfério”), a posterior “Doutrina Monroe Global” de Woodrow Wilson que em 1918 estendeu a supremacia americana a todo o mundo (talvez o começo do imperialismo americano),  John F. Kennedy que em agosto de 1962 dizia numa conferência:

 

A Doutrina Monroe significa o que significa desde que o Presidente Monroe e John Quincy Adams a enunciaram, e que diz que nós nos devemos opor a qualquer potência estrangeira que queira estender o seu poder para o Hemisfério Ocidental […]”

 

E em março de 2019, o assessor para a Segurança Nacional, John Bolton, expressava que “nesta administração [de Trump], não temos medo de usar a palavra Doutrina Monroe […] É objetivo dos presidentes americanos desde Ronald Reagan o terem um hemisfério completamente democrático”.

 

Tudo isto se baseia em planos estratégicos que os governos dos EUA vêm periodicamente elaborando e atualizando, definindo obviamente as suas opções, que se vão, ou não concretizando.

A 08 de março de 1992, o The New York Times publicou um artigo de Patrick Tyler intitulado “O Plano Estratégico dos EUA implica assegurar que os rivais não se desenvolvam”, contendo  a Orientação para o Planeamento de Defesa para os anos pós-guerra fria, ou seja, como os EUA viam e queriam atuar no mundo para continuarem a ser a potência hegemónica.

Cito aqui partes desse artigo que começa assim:

 

“Numa ampla e nova declaração de política que está em fase final de redação, o Departamento de Defesa afirma que a missão política e militar dos Estados Unidos na era pós-guerra fria será a de garantir que a nenhuma superpotência rival seja permitida emergir na Europa Ocidental, Ásia ou no território da antiga União Soviética.

Um documento de 46 páginas que circula há semanas nos mais altos escalões do Pentágono e que o secretário de Defesa, Dick Cheney, espera divulgar ainda este mês, afirma que parte da missão americana será "convencer potenciais concorrentes de que não precisam aspirar a desempenhar um papel maior ou adotar uma postura mais agressiva para proteger os seus legítimos interesses."

O documento confidencial defende um mundo dominado por uma superpotência cuja posição pode ser perpetuada por comportamento construtivo e poderio militar suficiente para impedir qualquer nação ou grupo de nações de desafiar a primazia americana.

Rejeitando a Abordagem Coletiva

Para perpetuar esse papel, os Estados Unidos "devem ter uma suficiente consideração para com os interesses das nações industrializadas avançadas por forma a desencorajá-las de desafiar a nossa liderança ou tentar derrubar a ordem política e económica estabelecida", afirma o documento.

 

Com foco nesse conceito de dominação benevolente de uma potência, o documento do Pentágono articula a mais clara rejeição feita até hoje do internacionalismo coletivo, estratégia que emergiu da Segunda Guerra Mundial quando as cinco potências vitoriosas procuraram formar uma Organização das Nações Unidas que pudesse mediar disputas e surtos de violência política. […]

Juntamente com seus anexos nos níveis de força necessários para assegurar o papel predominante da América, o rascunho da política é uma justificativa detalhada para a proposta de "força de base" do governo Bush de criar um exército de 1,6 milhão de efetivos nos próximos cinco anos, a um custo de cerca de US$ 1,2 triliões. Muitos democratas no Congresso criticaram a proposta como desnecessariamente cara. […]

 

No seu parágrafo de abertura, o documento de política anuncia a vitória "menos visível" no fim da Guerra Fria, que define como "a integração da Alemanha e do Japão num sistema de segurança coletiva liderado pelos Estados Unidos e a criação de um sistema democrático ‘zona de paz.' "

A continuação desse objetivo estratégico explica a forte ênfase noutras partes do documento e noutros planos do Pentágono sobre o uso da força militar, se necessário, para impedir a proliferação de armas nucleares e outras armas de destruição em massa em países como Coreia do Norte, Iraque, alguns das repúblicas sucessoras da União Soviética e na Europa. […]

Ignorada a ação da ONU.

O documento é visivelmente desprovido de referências à ação coletiva por meio das Nações Unidas, que garantiu o mandato para o ataque aliado às forças iraquianas no Kuwait e que em breve poderá ser solicitado a fornecer um novo mandato para forçar o presidente Sadam Hussein a cumprir com as suas obrigações de cessar-fogo.

O rascunho observa que as coligações "têm uma promessa a considerar para promover a ação coletiva", como na guerra do Golfo Pérsico, mas que "devemos esperar que as coligações futuras sejam assembleias ad hoc, muitas vezes não durando para além da crise enfrentada e, em muitos casos, portadoras apenas do acordo geral sobre os objetivos a serem alcançados”.

 

O que é mais importante, diz ele, é "a sensação de que a ordem mundial é, em última análise, apoiada pelos EUA" e "os Estados Unidos devem estar posicionados para agirem de forma independente quando a ação coletiva não puder ser orquestrada" ou numa crise que exija uma resposta rápida.

Funcionários do governo Bush vêm dizendo publicamente há algum tempo que estão dispostos a trabalhar no âmbito das Nações Unidas, mas que se reservam a opção de agir unilateralmente ou por meio de coligações seletivas, se necessário, para proteger os interesses americanos vitais. […]

Em contraste, o novo rascunho esboça um mundo em que há uma potência militar dominante cujos líderes “devem manter os mecanismos para dissuadir concorrentes potenciais de aspirar a um papel regional ou global mais amplo”.

Enviar para Administradores

O documento é conhecido na linguagem do Pentágono como Orientação de Planeamento de Defesa, […] será emitido ainda este mês pelo Secretário de Defesa Cheney. De acordo com um memorando de 18 de fevereiro do vice do Sr. Wolfowitz, Dale A. Vesser, a orientação política será emitida com um conjunto de cenários "ilustrativos" para possíveis futuros conflitos estrangeiros que possam atrair as forças militares dos Estados Unidos para combate.

Esses cenários, emitidos separadamente para os serviços militares a 4 de fevereiro, foram detalhados num artigo do New York Times no mês passado. Eles postularam guerras regionais contra o Iraque e a Coreia do Norte, bem como um ataque russo à Lituânia e contingências militares menores que as forças dos Estados Unidos poderiam enfrentar no futuro. […]

Medos da Proliferação

Ao avaliar as ameaças futuras, o documento coloca grande ênfase em como "o uso real de armas de destruição em massa, mesmo em conflitos que de outra forma não envolveriam diretamente os interesses dos EUA, poderia estimular uma maior proliferação que, por sua vez, ameaçaria a ordem mundial".

“Os EUA podem-se deparar com a questão de tomar medidas militares para impedir o desenvolvimento ou uso de armas de destruição em massa”, afirma, observando que essas medidas podem incluir a prevenção de um ataque iminente com armas nucleares, químicas ou biológicas. "ou punir os agressores ou ameaçar punir os agressores por vários meios", incluindo ataques às fábricas que fabricam tais armas.[…]

 

Pela primeira vez desde que o processo de “Orientação do Planeamento de Defesa” foi iniciado para moldar a política de segurança nacional, o novo rascunho afirma que a fragmentação do antigo estabelecimento militar soviético eliminou a capacidade de qualquer potência sucessora travar uma guerra convencional global.

Mas o documento qualifica a sua avaliação, dizendo: "não descartamos os riscos para a estabilidade na Europa de uma reação nacionalista na Rússia ou esforço para reincorporar à Rússia as recém-independentes repúblicas da Ucrânia, Bielorrússia e possivelmente outras".

 

Diz ainda que, embora os planos de alvos nucleares dos EUA tenham mudado "para dar conta dos desenvolvimentos bem-vindos nos estados da ex-União Soviética", as armas nucleares estratégicas dos EUA continuarão a visar aspetos vitais do antigo estabelecimento militar soviético. A justificativa para a continuação dessa política de direcionamento é que os Estados Unidos "devem continuar a colocar em risco os ativos e capacidades que os atuais - e futuros - líderes russos ou outros adversários nucleares mais valorizam" porque a Rússia continuará a ser "a única potência no mundo com a capacidade de destruir os Estados Unidos."[…]

Plano para a Europa

Na Europa, o documento do Pentágono afirma que "uma presença americana substancial na Europa e a coesão contínua dentro da aliança ocidental permanecem vitais", mas para evitar o desenvolvimento de uma relação competitiva, "devemos procurar impedir o surgimento de acordos de segurança apenas europeus que prejudicaria a OTAN."

 

O rascunho afirma que, com a eliminação das armas nucleares de curto alcance dos Estados Unidos na Europa e de armas similares no mar, os Estados Unidos não devem contemplar a retirada de suas aeronaves de ataque nuclear baseadas na Europa e, no caso de uma ameaça ressurgente de Rússia, "devemos planejar a defesa contra tal ameaça" mais adiante nos territórios da Europa Oriental "caso haja uma decisão da Aliança para fazê-lo."

Esta declaração oferece um compromisso explícito de defender as antigas nações do Pacto de Varsóvia da Rússia. Isso sugere que os Estados Unidos também poderiam considerar estender aos países da Europa Oriental e Central compromissos de segurança semelhantes aos estendidos à Arábia Saudita, Kuwait e outros estados árabes ao longo do Golfo Pérsico. E para ajudar a estabilizar as economias e o desenvolvimento democrático na Europa Oriental, o projeto apela à Comunidade Europeia para oferecer a adesão aos países da Europa Oriental o mais rápido possível.

 

No Leste Asiático, diz o relatório, os Estados Unidos podem reduzir ainda mais suas forças, mas "devemos manter o nosso estatuto de potência militar de primeira grandeza na área. Isso permitirá que os Estados Unidos continuem a contribuir para a segurança e a estabilidade regionais, atuando como uma força de equilíbrio e evitando o surgimento de um vácuo ou de uma hegemonia regional." […]

Caso as negociações de paz entre as duas Coreias sejam bem-sucedidas, o rascunho recomenda que os Estados Unidos "devem procurar manter uma relação de aliança com uma Coreia democrática unificada".

 

 

E até onde vão atualmente os interesses da América que não possam ser violados e que impliquem uma retaliação? Ou melhor, o que são atualmente para a América as suas fronteiras? São muito diferentes das que até aqui têm sido consideradas?

 

Para sul, eis uma declaração recente do Presidente Biden em que considera que tudo para sul a partir do México (inclusive) é o “quintal da frente da América” (“Everything south of the Mexican border is America’s front yard”).

E para leste, eis uma declaração da Secretária da imprensa Jen Psaki de 24 de janeiro de 2022 do seu  briefing à imprensa em que considera que a Ucrânia faz parte do que são as fronteiras americanas a leste.

E na região do Indo-Pacífico, eis o que o embaixador na China, Nicholas Burns, afirma, com base no documento da Casa Branca sobre a estratégia para essa região de fevereiro de 2022:

 

Os Estados Unidos são uma potência do Indo-Pacífico. A região, que se estende desde a costa do Pacífico até ao Oceano Índico, abriga mais da metade da população mundial, quase dois terços da economia mundial e sete das maiores forças armadas do mundo. Nesta região, estão baseados mais militares das forças armadas dos EUA do que em qualquer outra região fora dos Estados Unidos. Ela comporta mais de três milhões de empregos americanos e é a fonte de quase US$ 900 biliões em investimento estrangeiro direto nos Estados Unidos. Nos próximos anos, à medida que a região se tornar responsável por até dois terços do crescimento económico global, a sua influência só aumentará — assim como a sua importância para os Estados Unidos […]

 

Num cenário estratégico em rápida mudança, reconhecemos que os interesses americanos só podem ser promovidos se ancorarmos firmemente os Estados Unidos no Indo-Pacífico e fortalecermos a própria região, ao lado dos nossos aliados e parceiros mais próximos.

 

Essa intensificação do foco americano deve-se em parte ao facto de o Indo-Pacífico enfrentar desafios crescentes, principalmente da República Popular da China (RPC). A RPC está a tentar combinar o seu poderio económico, diplomático, militar e tecnológico enquanto procura uma esfera de influência no Indo-Pacífico, procurando tornar-se a potência mais influente do mundo. A coerção e agressão da RPC abrange todo o globo, mas é mais aguda no Indo-Pacífico. Da coerção económica à Austrália ao conflito ao longo da Linha de Controle Real com a Índia, à pressão crescente sobre Taiwan e à intimidação de vizinhos nos mares do leste e do sul da China, os nossos aliados e parceiros na região arcam com grande parte do custo do comportamento prejudicial da RPC. No processo, a RPC está também a subverter os direitos humanos e o direito internacional, incluindo a liberdade de navegação, bem como outros princípios que trouxeram estabilidade e prosperidade ao Indo-Pacífico.

 

Os nossos esforços coletivos ao longo da próxima década, determinarão se a RPC conseguirá transformar as regras e normas que beneficiaram o Indo-Pacífico e o mundo. Da nossa parte, os Estados Unidos estão a investir nas fundações da nossa força interna, alinhando a nossa abordagem com a dos nossos aliados e parceiros no exterior e competindo com a RPC para defender os interesses e a visão de futuro que compartilhamos com outros. Vamos fortalecer o sistema internacional, mantê-lo com base em valores compartilhados e atualizá-lo para enfrentar os desafios do século XXI. O nosso objetivo não é mudar a RPC, mas moldar o ambiente estratégico em que ela opera, construindo um equilíbrio de influência no mundo que seja o mais favorável possível aos Estados Unidos, aos nossos aliados e parceiros e aos interesses e valores que compartilhamos.”

 

É desta forma que os Estados Unidos como potência hegemónica dominante, para o qual tem vindo a trabalhar e sacrificar, pretende manter essa posição. Os dados estão lançados.

E todos os outros o sabem. O objetivo é obter a supremacia do capitalismo global americano ao impedir o aparecimento de qualquer outra superpotência que potencialmente possa competir.

Atente-se no comentário de 3.900 palavras que o Ministro dos Negócios Estrangeiros da China fez em fevereiro de 2023 para condenar os quase 80 anos da hegemonia americana política, militar, económica, tecnológica e cultural, e que aqui se reproduz. Ninguém é ingénuo.

 

 

Há duas curtas citações que me parecem importantes para fim de tema. Uma, do  filósofo italiano Antonio Negri (1933 -), um dos primeiros a definir e identificar o conceito de Império (2000) como uma nova forma de soberania, distinta do imperialismo, pelo facto de não estabelecer nenhum centro de poder e por não se sustentar em fronteiras ou barreiras fixas, o que faz com que o seu domínio não tenha limites, e ainda por se apresentar como um regime histórico que não se origina pela conquista.

Tem ainda características como a de dominar e operar em todos os registos da ordem social, penetrando até ao mais profundo do mundo social. Não só regula as interações humanas, como ainda procura governar diretamente toda a natureza humana:

 

 “O império não só governa um território e uma população, com também cria o mundo que habita.”

 

Outra, de Harold Pinter, a propósito de se viver num tempo em que a mentira é a norma e em que os interesses políticos e económicos se disfarçam por baixo das causas mais nobres e inocentes:

 

 “Nunca aconteceu nada. Mesmo quando estava a acontecer, não estava a acontecer. Não tinha importância. Não tinha interesse …

 

 

 

Notas:

 

1 Consta do blog de 22 de junho de 2016, “A mulher de César”,

https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/a-mulher-de-cesar-17185). 

2 Consta do blog de 30 de novembro de 2016, “A captura da democracia”,

 https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/a-captura-da-democracia-pelas-falsas-24001 ).

 

 

 

(414) A ecologia apocalítica dos balões

Tempo estimado de leitura: 9 minutos.

 

A política molda as perguntas que os cientistas fazem e as metáforas que buscam.

 

A guerra termonuclear pode ser planeada do mesmo modo que os tornados, inundações e acidentes de trânsito, Joseph Masco.

 

A maior parte dos analistas pensa não ser provável que Putin use armas nucleares, Nicholas Kristof.

 

Estamos safos!

 

Tudo o que se tem de fazer é dizer-lhes que estamos a ser atacados e denunciar os pacifistas por falta de patriotismo, Hermann Göring.

 

 

 

Com a introdução de bombas atómicas nos seus arsenais, as cliques dirigentes (políticas, económicas, militares) dos países que as possuíam, iniciaram uma série de experimentações (a que eufemisticamente chamaram de “ensaios” para lhes dar um cunho de seriedade científica, o que acabou por contribuir para o descrédito da Ciência, mas isso é outra história) para obterem os conhecimentos até aí inexistentes sobre as utilizações, efeitos e armazenamento das referidas bombas.

As experiências iniciais constituíram na detonação real de variadas bombas atómicas de diferentes potências, no ar, no solo, e debaixo do solo, a que se seguiram experiências com irradiação de material fortemente radioativo em ambientes naturais (florestas, plantações, animais, etc.).

 

Nos EUA, esses programas experimentais realizados entre 1945 e 1962, conduziram à detonação de aproximadamente 300 bombas atómicas que provocaram transformações nos ambientes físicos e biológicos do sudoeste dos Estados Unidos e das colonizadas Ilhas Marshall.

Foi a partir daí que os cientistas e o público passaram a reconhecer a precipitação radioativa como uma ameaça regional e possivelmente global à saúde humana.

A essa crescente preocupação com a precipitação nuclear vai juntar-se uma outra: o medo proveniente da aniquilação nuclear.

À medida que os EUA e a União Soviética aumentavam o número e o alcance de seus arsenais nucleares, começou a ser plausível imaginar a eclosão de uma guerra catastrófica à escala global. Recorde-se que em 1950, os EUA tinham 299 armas nucleares. Em 1960, tinham 18.638. E em 1965, tinham 31.139.

Estudos da RAND Corporation, (R de research, AN de and, e D de devellopment) uma instituição de promoção de pensamento com raízes no Departamento de Guerra dos Estados Unidos, estimavam que um primeiro ataque soviético teria como alvo 50 cidades dos Estados Unidos e resultaria em 90 milhões de mortos. Com esses números em mente, a Comissão de Energia Atómica dos Estados Unidos (AEC) começou a querer prever quais seriam as consequências económicas e sociais de uma terceira guerra mundial.

Construíram cidades inteiras e povoaram-nas com moradores-manequins em cenas do seu dia-a-dia suburbano: a família nuclear, cercada por carros novos, móveis e eletrodomésticos doados pelos fabricantes. Montaram também modelos de frotas navais. Tudo era depois bombardeado com bombas atómicas reais.

O governo distribuía depois fotografias e documentários filmados a fim de tentarem convencer o público de que era possível sobreviver a uma guerra nuclear,  e que a principal responsabilidade por essa sobrevivência  recaía sobre as famílias e a preparação que deveriam fazer.

Como disse o antropólogo Joseph Masco em “’Survival Is Your Business’: Enginnering Ruins and Affect  in Nuclear America”, por meio dessas simulações, o governo “procurou fazer da morte em massa uma experiência psicológica íntima, ao mesmo tempo que afirmava que a guerra termonuclear poderia ser planeada do mesmo modo que os tornados, inundações e acidentes de trânsito”.

 

Entre 1946 e 1958, os EUA detonaram o equivalente a 7.000 bombas de Hiroxima nas Ilhas Marshall. Em 2022, os refugiados dos atóis de Bikini e Rongelap continuavam a não serem autorizados a voltarem para as suas casas.

Em 1950, o governo federal estabeleceu o Nevada Proving Grounds nos  territórios índios de Western Shoshone e Southern Paiute, e subsequentemente realizou aí 100 testes nucleares atmosféricos e 921 subterrâneos. Os testes libertaram aproximadamente 12 biliões de curies de radiação, provocando com isso câncer e morte durante décadas (para se ter uma ideia, o desastre de Chernobyl libertou cerca de 81 milhões de curies de radiação).

 

Estabelecido que poderia haver um juízo final, o governo dos EUA encarregou então militares, sociólogos e até escritores de ficção científica para efetuarem pesquisas sobre o dia desse apocalipse.

A partir de 1943, contratou também ecologistas para estudarem o que acontecia com as plantas e os animais colocados nos locais da detonação.

Inicialmente, os cientistas esperavam que o oceano e a atmosfera diluíssem rapidamente a precipitação radioativa. Em vez disso, descobriram que os organismos acumulavam os elementos radioativos e que os organismos mais elevados na cadeia alimentar eram os que ficavam mais radioativos. Perceberam ainda que uma ampla gama de produtos químicos, incluindo poluentes como metais pesados ​​e o inseticida DDT, ampliavam também essa radioatividade.

Em 1961, o governo deu instruções para se começar a investigar mais a fundo a “recuperação pós-guerra de ambientes bióticos devastados”. Começaram então a serem financiados estudos nos quais os ecossistemas eram propositadamente danificados pelos ecologistas para entenderem se eles se recuperariam e, em caso afirmativo, como.

Essas experiências não eram marginais, basta recordar que o AEC foi o principal financiador da pesquisa ecológica desde o início da Segunda Guerra Mundial até meados da década de 1970, quando a National Science Foundation o eclipsou. A ciência do ecossistema era à época considerada a ciência do juízo final.

As primeiras simulações ecológicas do pós-guerra aconteceram no Brookhaven National Laboratory em Long Island, Nova Iorque. Em 1962, ecologistas expuseram um antigo campo agrícola e uma floresta de carvalhos a radiação gama contínua de fontes pontuais de césio-137 e cobalto-60 durante cinco meses. O Gabinete de Defesa Civil da AEC apoiou o projeto. O objetivo principal era avaliar a recuperação biótica da exposição à radiação numa escala que poderia resultar de uma guerra nuclear.

Os ecologistas justificaram o experimento, que ocorreu de forma intermitente até 1978, argumentando que era importante antecipar os efeitos da guerra nuclear nas florestas recidivas orientais próximas aos centros urbanos, porque os locais em que até aí se tinham efetuado testes de bombardeamento tinham sido restritos a desertos e atóis tropicais com flora limitada.

Os cervos radioativos que ainda hoje vagueiam por Long Island, não são o único legado desse experimento. Por meio desse trabalho de campo atómico, os ecologistas desenvolveram a ideia de "radiossensibilidade comparativa". Cientistas de Brookhaven descobriram que os membros da família das margaridas sobreviveram a altos níveis de radiação, enquanto as espécies de pinheiros eram as mais “sensíveis” à radiação.

Esta foi uma nova forma de categorizar as espécies – não por taxonomia ou por quem comeu o quê, mas pela capacidade de resistir à perturbação. Hoje, muitos de nós estamos familiarizados em pensar nas espécies desta maneira: quais são as espécies mais tolerantes à seca, ou capazes de resistir a furacões, ou com maior probabilidade de sobreviver à crise climática. Mas, numa perspetiva histórica, essa é uma maneira muito nova de pensar sobre as qualidades de uma espécie.

 

Outras experiências de irradiação realizadas nas florestas de Luquillo, Porto Rico, tinham o objetivo de ajudarem o continente a preparar-se para uma guerra nuclear. Pretendia-se também com essa irradiação, contribuir para outro projeto, o projeto Plowshare Pan-Atomic Canal, um plano para 'melhorar' o Canal do Panamá detonando uma série de bombas H, para acabar com a necessidade de construção de eclusas no canal. Também aí se testou o Agente Laranja e outros “herbicidas táticos” para uso na Guerra do Vietname.

 

Em 1970, seguindo a recomendação da RAND Corporation para que os “estudos de radiossensibilidade comparativa fossem grandemente aumentados”, os ecologistas colocaram fontes de radiação numa floresta tropical em Luquillo e em campos agrícolas e florestas de recidivas em Nova York, Nevada, Carolina do Sul e Tennessee. Embora realizadas em locais particulares, as simulações dos chamados “ecologistas da Terceira Guerra Mundial” foram sempre orientadas para o desenvolvimento de estratégias generalizadas e transponíveis para a sobrevivência dos cidadãos americanos – exceto aqueles que vivessem em Porto Rico, nas Ilhas Marshall ou em Nevada.

Os ecologistas acreditavam que esses experimentos apocalípticos lançariam luz sobre como o mundo biótico estava naturalmente estruturado. Por exemplo, no seu livro Ecological Effects of Nuclear War (1963), o ecologista George Woodwell explicou que as experiências apocalípticas pretendiam simultaneamente antecipar "os complexos problemas ecológicos envolvidos num holocausto nuclear" e definir os "padrões normais de estrutura, função, e desenvolvimento característicos dos ecossistemas naturais'. Os ecologistas queriam saber como o mundo se recomporia após o desastre.

 

Em busca desse conhecimento, a destruição tornou-se um método padrão de estudo dos ecossistemas. Num exemplo particularmente dramático em 1966, Edward O. Wilson, entomologista de Harvard, e um de seus alunos de pós-graduação, Daniel Simberloff, escolheram seis ilhas na baía da Flórida para matar todos os animais vivos.

Primeiro, fizeram o censo dos insetos em cada ilha, depois encerraram em tendas ilhas inteiras e fumigaram com brometo de metilo. Após esta “defaunação”, Simberloff recenseou as comunidades de insetos. Para garantir que os insetos recolonizadores chegassem por meios "naturais" e não do próprio Simberloff, ele encharcava-se entre as visitas num repelente de insetos chamado Off! Na redação dos seus resultados experimentais, Simberloff e Wilson ressaltaram o pioneirismo das suas experiências com a introdução de várias “perturbações” induzidas, como inseticidas e fogo. O projeto foi parcialmente financiado pelo Departamento de Defesa.

 

Antes da década de 1960, a maioria dos ecologistas acreditava que, dado tempo e espaço, a natureza acabar-se-ia por regenerar. Chegaram a essa conclusão por meio da “teoria da sucessão ecológica” – a crença de que as comunidades ecológicas se desenvolveram de conjuntos instáveis ​​de espécies para uma “comunidade clímax” estável que se adaptou ao seu ambiente físico. Os teóricos da sucessão ecológica sustentavam que os danos ecológicos causados ​​pelo homem eram reversíveis, com a importante exceção das extinções de espécies.

Emblemático dessa visão é o livro Man and Nature (1864) de George Perkins Marsh.  Segundo ele, os “arranjos naturais, uma vez perturbados pelo homem” seriam “restaurados” quando o homem “se retirasse do campo e deixasse espaço livre para energias de recuperação espontâneas”.

Uma visão semelhante prevaleceu durante a década de 1950, reforçada por estudos de terras agrícolas abandonadas na Nova Inglaterra, que pareciam reverter rapidamente para uma floresta densa. No influente simpósio “O Papel do Homem na Mudança da Face da Terra” em 1955, o ecologista Edward Graham observou que a natureza recuperou facilmente do cultivo intensivo, pastagem, caça e extração de madeira quando as pessoas desistiram da ação prejudicial. As comunidades ecológicas, observou ele, tinham o “poder de se recriar” para “se reconstituirem quando a causa da perturbação desaparece”.

 

No entanto, alguns experimentos apocalípticos abalaram a fé dos ecologistas numa natureza perpetuamente autorregeneradora. Devido a experimentações em que se danificavam os ecossistemas, começou-se a verificar que a recuperação ecológica não era inevitável e que os ecossistemas poderiam parar de funcionar totalmente se suficientemente danificados pelos seres humanos.

 

Essa “teoria da sucessão ecológica” tem muito que ver com a ideia de “destino manifesto”, a crença dos colonizadores de que a sucessão da propriedade dos nativos americanos para propriedade dos brancos era natural e inevitável.

A política molda as perguntas que os cientistas fazem e as metáforas que eles buscam. A teoria do ecossistema, por sua vez, surgiu quando os EUA perceberam estar sob ameaça perpétua. Os ecologistas começaram a perguntar como é que os ecossistemas se mantinham quando constantemente bombardeados por elementos exteriores stressantes.

 

No contexto do planeamento para o dia do juízo final, os ecologistas começaram a interrogar-se sobre se haveria um limiar de dano a partir do qual os ecossistemas perderiam a capacidade de se restaurar. Um relatório do Departamento de Defesa de 1965 observou que os ecologistas apocalípticos descobriram que os ecossistemas podem ficar tão danificados “que a restauração nunca possa ser mais do que parcial e incompleta”.

Uma vez que o “equilíbrio ecológico é seriamente perturbado”, continuou o relatório, “[algumas] espécies, não mais controladas pelos seus inimigos naturais, podem-se multiplicar enormemente; outras, privadas das suas fontes normais de alimento ou afetadas pela mudança total no sistema, podem desaparecer.'

Mais de uma década depois, um estudo do Office of Technology Assessment para o Comité de Relações Exteriores do Senado dos Estados Unidos concluiu que, após um ataque soviético, seria difícil ou impossível restaurar um ecossistema à sua condição pré-ataque devido à "possibilidade de mudanças ecológicas irreversíveis'.

Mas o que continuou a assombrar a disciplina da ecologia mesmo após o fim da Guerra Fria não foi a possibilidade de aniquilação global, mas o espectro mais subtil da mudança ecológica irreversível.

 

Os esforços atuais de planeamento de cenários, seja esse cenário de mudança climática ou uma nova variante do COVID, compartilham raízes do planeamento apocalíptico da década de 1960. O objetivo não é mais a prevenção ou contenção, mas a mitigação de danos inevitáveis. A resiliência, a palavra-chave do nosso presente de mudança climática, é comprovada apenas por meio da adversidade. Judith Rodin, ex-presidente da Fundação Rockefeller, descreve a resiliência como “a capacidade de indivíduos, comunidades, instituições, empresas e sistemas dentro de uma cidade de sobreviver, adaptar-se e crescer, independentemente dos tipos de stress crónico e choques agudos que vivenciam .'

 

Mas divulgar a resiliência como um valor ou um ativo torna-se perigoso, uma vez que isso equivale a aceitar o ônus de resiliência nas comunidades, ou seja, aceitar o status quo.

Celebrar a resiliência é imaginar um futuro de dano perpétuo.

 

Quase tudo o acima exposto pode-se encontrar no livro Wild by Design: The Rise of Ecological Restoration (2022), de Laura J Martin.

 

 

Como resultado destas experimentações, duas tendências apareceram: uma que reconhece que os mísseis balísticos intercontinentais com armas nucleares são as armas mais perigosas no mundo e que podem inclusivamente dar lugar acidentalmente a uma guerra nuclear em que cerca de 99% da população pereceria.

Eis o que Daniel Ellsberg nos elucida:

 

[a guerra nuclear] "levaria para a estratosfera muitos milhões de toneladas de fuligem e fumaça negra das cidades em chamas. Rapidamente se espalharia à volta do globo reduzindo a luz do Sol em 70%, dando lugar a temperaturas tão baixas como as da Pequena Idade do Gelo, matando as colheitas em todo o mundo e levando à morte por fome quase todos na Terra. Provavelmente não causaria a extinção. Somos tão adaptáveis. Talvez 1% de nossa população atual de 7,4 bilhões pudesse sobreviver, mas 98 ou 99 por cento não."

 

O mesmo se pode ler no Bulletin of the Atomic Scientists, com o título de “Nowhere to Hide”, como uma guerra nuclear te matará a ti e a quase todos os outros.

 

A outra tendência, interpreta os resultados dos ensaios como demonstrativos de que é possível sobreviver-se a uma guerra nuclear se estivermos preparados, podendo perfeitamente ser encarada como mais uma opção militar a ter em conta.

No caso da atual guerra na Ucrânia, Timothy Snyder, no seu artigo “Why the world needs Ukrainian victory”, defende a opção militar até às últimas consequências porque a Rússia não utilizará armamento nuclear.

A mesma linha segue Nicholas Kristof no seu artigo no The New York Times, “Biden Should Give Ukraine What It Needs to Win”, onde embora reconheça “preocupações legítimas de que se Putin for colocado num canto, ele poderá atingir o território da NATO ou usar armas atómicas táticas”, logo descarta tais possibilidades porque “a maior parte dos analistas pensa não ser provável que Putin as use”. Estamos safos!

 

Atente-se nas expressões “a maior parte” e “não ser provável”. Como não estarmos preocupados com a possibilidade de uma guerra nuclear quando as decisões dependerem destes jogos de dados de pessoas bem-pensantes-informadas e conotadas com a parte mais aguerrida do sistema?

 

Atente-se nas recentes decisões igualmente baseadas no “achismo” dos que nos governam em mandar abater com mísseis 3 ou 4 balões dos quais apenas um se sabia a proveniência, aventando mesmo alguns generais a hipótese de serem extraterrestres, e de que mais ninguém voltou a falar ou em preocupar recuperar (só um). “Shoot Them Down”, gritava-se no Congresso americano, único organismo com poder para declarar guerra. Brincadeiras de crianças grandes de que dependemos para sobreviver?

Ou talvez não: serviu pelo menos para manter viva a desconfiança relativamente ao inimigo de olhos em bico.

 

Como disse o general nazi Hermann Göring numa entrevista após ser preso:

 

As pessoas não querem guerra, seja na Rússia, na Inglaterra ou na América, nem na Alemanha. Percebe-se isso […] são os leaders do país quem determina a política. Tudo o que se tem de fazer é dizer-lhes que estamos a ser atacados e denunciar os pacifistas por falta de patriotismo”.

 

 

Nota:

A China tem 68 satélites militares em órbita capazes de lerem os números da placa de licença de um carro a circular, os EUA têm 122 satélites militares capazes de fazerem o mesmo ou melhor, a Rússia tem 74 satélites militares a sobrevoarem os EUA a cada poucos minutos.

 

 

 

 

 

 

(412) Entre o Velho do Restelo e a destruição criativa

Tempo estimado de leitura: 8 minutos.

 

Que estranha cena descreves e que estranhos prisioneiros. São iguais a nós. Platão, República, Livro VII, epígrafe de Saramago, A Caverna.

 

A razão porque as pessoas leem hoje tão mal é porque há uma quantidade enorme de textos impressos, Zhu Xi.

 

Uma das grandes causas das desordens nervosas e de perigo para o “espírito feminino” é a leitura de novelas.

 

A quantificação do real na busca de dados expulsa o espírito do conhecimento.

 

 

 

É n’Os Lusíadas, canto IV, que Camões introduz a figura do Velho do Restelo:

 

94

Mas um velho, de aspecto venerando,

Que ficava nas praias, entre a gente,

Postos em nós os olhos, meneando

Três vezes a cabeça, descontente,

A voz pesada um pouco alevantando,

Que nós no mar ouvimos claramente,

C'um saber só de experiências feito,

Tais palavras tirou do experto peito:

95

— "Ó glória de mandar! Ó vã cobiça

Desta vaidade, a quem chamamos Fama!

Ó fraudulento gosto, que se atiça

C'uma aura popular, que honra se chama!

Que castigo tamanho e que justiça

Fazes no peito vão que muito te ama!

Que mortes, que perigos, que tormentas,

Que crueldades neles experimentas!

96

— "Dura inquietação d'alma e da vida,

Fonte de desamparos e adultérios,

Sagaz consumidora conhecida

De fazendas, de reinos e de impérios:

Chamam-te ilustre, chamam-te subida,

Sendo digna de infames vitupérios;

Chamam-te Fama e Glória soberana,

Nomes com quem se o povo néscio engana!

97

— "A que novos desastres determinas

De levar estes reinos e esta gente?

Que perigos, que mortes lhe destinas

Debaixo dalgum nome preminente?

Que promessas de reinos, e de minas

D'ouro, que lhe farás tão facilmente?

Que famas lhe prometerás? que histórias?

Que triunfos, que palmas, que vitórias?

 

 

Como sabemos (e Camões também o sabia) o Velho do Restelo não é caraterístico nem dos velhos nem dos jovens que vivem no Restelo, nem dos que vivem noutros locais específicos, nem só dos que vivem numa determinada época, estando até muito bem representado nos tempos em que vivemos.

Por exemplo, somos hoje diariamente confrontados com afirmações de que as Googles nos estão a tornar estúpidos, que os telemóveis ‘espertos’ estão a destruir as novas gerações, que o constante acesso à internet degrada a memória e a capacidade para se conseguir manter uma atenção sustentada, etc.

Como provas ‘concludentes’ são apresentadas as distrações provocadas pelo uso do telemóvel enquanto conduzimos, daí concluindo que a quantidade de informação que os meios tecnológicos proporcionam são os culpados dessas distrações, não esquecendo ainda de acrescentar sentimentos de ansiedade e nostalgia induzidos.

 

Acontece, contudo, que todos estas preocupações e sentimentos se têm verificado ao longo do tempo em todas as sociedades, especialmente nas épocas em que se verificam grandes transições técnicas e tecnológicas.

 

É assim que Platão, num de seus diálogos, “Fedro”, nos conta como o inventor da escrita, o deus egípcio chamado Theuth, dá a conhecer a sua obra ao rei dos deuses, Thamus. ‘Esta invenção, ó rei’, diz Theuth, ‘tornará os egípcios mais sábios e com melhor memória; é um elixir de memória e sabedoria.'

Contudo, o rei dos deuses, Thamus, via a invenção de forma contrária:

 

    “Essa invenção produzirá esquecimento na mente daqueles que aprenderem a usá-la, porque não exercitarão a sua memória. A confiança na escrita, produzida por personagens externos que não fazem parte deles próprios, desencorajará o uso da sua própria memória dentro deles. Tu inventaste um elixir não de memória, mas de lembrança; e ofereces aos teus alunos a aparência da sabedoria, não a verdadeira sabedoria, pois eles lerão muitas coisas sem instrução e, portanto, parecerão saber muitas coisas, quando na maioria das vezes são ignorantes e difíceis de lidar, uma vez que não são sábios, mas apenas aparentam serem sábios.”

 

Séneca, vem depois dizer-nos que “a existência de muitos livros é uma distração”.

O mesmo se passa com a impressão e a consequente proliferação de livros, que leva o filósofo chinês Zhu Xi do século 12, constatar que se vivia numa época de pessoas dispersas, distraídas, e que tal se devia ao aparecimento da tipografia:

A razão porque as pessoas leem hoje tão mal é porque há uma quantidade enorme de textos impressos.”

 

Nos finais do século 14, Petrarca escrevia contra a mania de se acumularem livros sem os ler:

 

“Creia-me, isso não é alimentar a mente com literatura, mas matá-la e enterrá-la com o peso das coisas ou, talvez, atormentá-la até que, enlouquecida por tantos assuntos, essa mente não pode mais saborear nada, mas olha tudo com saudade, como Tântalo sedento no meio da água.”

 

Renascentistas como Erasmo e Calvino atribuíam a esse vaguear e saltar incessante pela “confusa floresta” de livros, a dificuldade em se encontrar um verdadeiro pensamento sério.

 

Mas também algumas pequenas transições técnicas foram encaradas com o mesmo espírito de desconfiança. Por exemplo, para conviver com os cada vez mais variados textos manuscritos, desenvolveu-se todo um processo de sistematização (linhas de pensamento) que permitiam uma organização do conhecimento do mundo de acordo com um sistema de pensamento. “Adulterar o pensamento”, era a crítica associada.

O próprio aparecimento dos simples índices, ferramenta essencial de pesquisa para estudantes e professores, foi também bastante criticado por tornar os leitores preguiçosos: “liam apenas títulos e índices”, e que isso acabaria por levar os escritores a colocarem o seu material mais controverso nos índices.

À medida que a crescente classe média e mais mulheres começaram a ler intensamente novelas e romances (século 18), também isso foi apontado como uma das grandes causas das desordens nervosas, sendo especialmente um perigo para o “espírito feminino” (a chamada “leitura patológica” que provocava a sobre estimulação dos nervos, conforme estudos científicos da época demonstravam).

 

Já Andy Clark e David Chalmers, vão antes tentar compreender o porquê destes comportamentos (como o pensamento interior lida, responde, perante o mundo que lhe é exterior), o que os levou a publicar em 1998 o estudo “The Extended Mind” no qual preconizam que a nossa capacidade para pensar pode ser alterada e expandida através de tecnologias como a escrita.

É a tese segundo a qual o pensamento não reside apenas no cérebro ou no corpo, mas que compreende também o mundo físico, ou seja, que certos objetos que nos são exteriores (tábuas de cálculo, computadores, diários, e demais objetos que sirvam para guardar informação), fazem parte do processo cognitivo funcionando como extensões do pensamento.

 

Leiamos o que mais esclarecidamente nos deixou Saramago, em A Caverna:

 

Horas atrás de horas […] o oleiro fez, desfez e refez bonecos com figuras de enfermeiras e de mandarins […] Na verdade, são poucos os que sabem da existência de um pequeno cérebro em cada um dos dedos da mão, algures entre a falange, a falanginha e a falangeta. Aquele outro órgão a que chamamos de cérebro, esse com que viemos ao mundo, esse que transportamos dentro do crânio e que nos transporta a nós para que o transportemos a ele, nunca conseguiu produzir senão intenções vagas, gerais, difusas e, sobretudo pouco variadas, acerca do que as mãos e os dedos deverão fazer […] Note-se que, ao nascermos, os dedos ainda não têm cérebros, vão-nos formando pouco a pouco com o passar do tempo e o auxílio do que os olhos vêem. O auxílio dos olhos é importante, tanto quanto o auxílio daquilo do que por eles é visto. Por isso o que os dedos sempre souberam foi precisamente revelar o oculto. O que no cérebro possa ser percebido como conhecimento infuso, mágico ou sobrenatural, seja o que for que signifiquem sobrenatural, mágico e infuso, foram os dedos e os seus pequenos cérebros que lho ensinaram. Para que o cérebro da cabeça soubesse o que era a pedra, foi preciso primeiro que os dedos a tocassem, lhe sentissem a aspereza, o peso e a densidade, foi preciso que se ferissem nela. Só muito tempo depois o cérebro compreendeu que daquele pedaço de rocha se poderia fazer uma coisa a que chamaria faca e uma coisa a que chamaria ídolo.”

 

Parece, pois, que perante as inovações técnicas que foram sendo feitas, e para além das resistências que sempre apareceram, foram também sempre surgindo meios para conviver com elas.

Contudo, acontece que hoje as grandes empresas tecnológicas conseguem aperceber-se dos modelos coletivos de comportamento, mesmo daqueles comportamentos que nem sequer aparecem como conscientes para os próprios indivíduos. Têm assim acesso a um chamado inconsciente coletivo digital.

Através deste acesso, estas empresas, para além de vigiar e controlar as massas, conseguem ainda regular o seu futuro comportamento social. Não se trata já só de conhecer os modelos de conduta no presente, mas também de conhecer os seus possíveis prognósticos. Trata-se não só de controlar os “apetites” das massas no presente, mas também de induzir “apetites” no futuro.

Mas como conseguem estas empresas analisar e tirar conclusões de tal quantidade de dados? Se seguissem o método científico tradicional, primeiro os cientistas teriam de aventar uma hipótese, um modelo visualizável nas suas cabeças, e depois testá-lo. Teriam de encontrar uma causalidade que lhes permitisse ligar os dados ao modelo e á realidade. Construir uma teoria. Evidentemente, devido à enormidade de dados, tal método seria extremamente lento, e mesmo que chegasse a alguma conclusão, já teria passado o tempo de intervir.


Num artigo muito interessante de Chris Anderson, “The end of theory: the data deluge makes the scientific method obsolete”, que começa com uma citação do matemático George E. P. Box: “Todos os modelos estão errados, há é alguns que são úteis”, ele vai explicar-nos que  a teoria aparece como uma construção, um meio auxiliar para compensar a falta de dados.

Se dispusermos de dados suficientes, a teoria passa a ser supérflua. Em vez da criação de modelos de teorias hipotéticas, podemos passar diretamente à análise matemática sem o estabelecimento de hipóteses sobre o que poderão significar, deixando para depois o estabelecimento do contexto. Podemos lançar números para as maiores constelações de computadores existentes e deixar que sejam os algoritmos estatísticos a encontrar os padrões que a ciência não consegue. A correlação substitui assim a causalidade. O “é assim” substitui o “porque”.


Transcrevendo Anderson:


Empresas como a Google, que cresceram numa época de massas de dados enormemente grandes, hoje em dia não têm que decidir-se por modelos errados. Aliás, não têm mesmo que decidir-se em geral por nenhum modelo […] Quem pode dizer porque é que os homens fazem o que fazem? Fazem-no simplesmente, e podemos constatá-lo e medi-lo com uma exatidão sem precedentes. Se dispusermos de suficiente data, os números falam por si mesmos.”


Foi assim que a Google conquistou o mundo dos anunciantes, sem saber nada sobre a cultura e convenções de anúncios. Assumiu que tendo melhores dados e melhores ferramentas de análise, tal seria suficiente para ganhar. E foi.

Ela não sabe porque é que uma página é melhor do que outra: é-lhe suficiente que as estatísticas que lhes chegam dos enlaces digam que é. Não é necessária qualquer análise semântica ou causal. É por isto que a Google pode traduzir linguagens sem as ‘conhecer’, e é por isso que pode adicionar anúncios a conteúdos sem conhecer nem os anúncios nem os conteúdos.

Deparámo-nos aqui com duas das mais importantes linhas de força que podem definir a presente e futura sociedade:

a da vigilância digital, que permitindo o acesso ao inconsciente coletivo pode vir a influenciar o futuro comportamento social das massas, com o consequente controle por parte de grandes grupos, sejam eles empresas ou complexos militares-industriais, resultando numa crescente apatia ou militarização da sociedade;

o desaparecimento da teoria que nos permitia pensar o mundo ou como o compreender de forma a poder-nos situar nele, quer fosse através da ontologia, da linguística, da sociologia ou de qualquer outra teoria sobre comportamento humano, e sua substituição por matemática aplicada à massificação de dados (“A quantificação do real na busca de dados expulsa o espírito do conhecimento”).

 

E é com isto que atualmente nos confrontamos e a que prosaicamente ao nível da economia, Joseph Schumpeter chama de “destruição criativa” (como o capitalismo se reinventa periodicamente).

Já passámos por fases em que o pensamento mitológico funcionava por correlação, por racionalidades em que o Sol andava à volta da Terra, pelo que a agora correlação racional das máquinas governadas pela Inteligência Artificial não nos deve afastar daquilo que é importante: saber quem as controla e com que finalidade. Não perder o foco.

 

Exemplo recente foi o acontecido com a entrevista que o conceituado jornalista independente Seymour Hersh deu no Democracy Now!  sobre  o seu artigo “How America Took Out the Nord Stream Pipeline”, e que o You Tube censurou por a considerar ofensiva, o que levou o jornalista Patrick Lawrence a escrever a 20 de fevereiro de 2023 o artigo, “Totalized Censorship”, do qual extraio os parágrafos:

 

As tecnologias não são neutras em termos de valor. Jacques Ellul, o anarquista cristão e intelectual multifacetado, defendeu isso em The Technological Society. Segundo a sua tese, as tecnologias não são vazias de conteúdo além do que constam nelas. Implícita em qualquer tecnologia está sempre uma afirmação da economia política e das circunstâncias materiais que a produziram.

Por outras palavras, as tecnologias disponíveis para jornalistas independentes são produtos corporativos. Eles são vitais para praticantes independentes como meio de entrega, mas, como aprendemos a cada dia, o acesso a eles pode ser interrompido a qualquer momento. Muitos de nós parecem ter perdido essa contradição. Agora somos pressionados a reconhecê-lo.”

 

O foco não foi perdido.

 

 

Notas:

 

A descrição até à atualidade de alguns comportamentos relacionados com adaptações sociais relativas à introdução de novas técnicas, pode ser encontrada no livro de Johann Hari, Stolen Focus.

 

Há um interessante estudo, “The iPhone Effect: The Quality of in-Person Social interactions in the presence of Mobile Devices”, onde os autores concluem que as interações que temos com as outras pessoas são mais formais e menos empáticas quando feitas ao telemóvel, mesmo que ele se encontre apenas só pousado na mesa de trabalho. Ou seja, o caráter das conversações que temos é alterado.

 

Este blog contém parte do artigo de 13 de janeiro de 2016, “Big Data, big shit!”.

 

De interesse ainda o blog de 13 de julho de 2016, “O perigo dos equívocos da técnica moderna”.

 

(412) Escritos (Jan2020/08Fev2023)

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

2020  2020

                        248     01jan20        Selvagens são os outros                         

                        249     08jan20        O ressentimento na história                 

                        250     15jan20        O nazismo não é nada banal                 

                        251     22jan20        A mensagem imperial                             

                        252     29jan20        As histórias têm moral                            

                        253     05fev20        Grandes controvérsias                            

                        254     12fev20        Espaços de liberdade                              

                        255     19fev20        O Antropoceno de apagão em apagão                       

                        256     26fev20        Potâmio de Lisboa                                   

                        257     04mar20       Tempo dos assassinos                             

                        258     11mar20       Cassetete: Descartes, Espinosa  

                        259     18mar20       Cuidados de saúde como ética              

                        260     25mar20       Pandemias na globalização                      

                        261     01abr20        A colonização sionista da Palestina        

                        262     08abr20        Classe                                                           

                        263     15abr20        O homem lobo do homem                      

                        264     22abr20        O absurdo não é a peste  (Camus)                        

                        265     29abr20        A insustentabilidade da moda                 

                        266     06mai20       Tempo para morrer                                    

                        267     13mai20       A bondade do homem (Jasão, Medeia

                        268     20mai20       Porquê tanta pressa?                            

                        269     27mai20       Categorias do Belo                                  

                        270     03jun20        À espera dos bárbaros                              

                        271     10jun20        Arte na Igreja                                             

                        272     17jun20        Não peçam trabalho. Peçam dinheiro   

                        273     24jun20        O sublime tecnológico (Projeto Manhattan)                             

                        274     01jul20         As galinhas livres                                        

                        275     08jul20         O futuro não precisa de nós                    

                        276     15jul20         Matar ou deixar morrer  (o botão chinês)                          

                        277     22jul20         Pela internet morre o peixe                      

                        278     29jul20         O efeito Medeia                                         

                        279     05ago20       Todos os modelos estão errados             

                        280     12ago20       Faz o que eu te digo                                  

                        281     19ago20       Panos e nódoas: Sérgio e Antero            

                        282     26ago20       Vidas que os nazis criaram                       

                        283     02set20        Os rituais da guerra                                    

                        284     09set20        Neurociência como anfiteatro                 

                        285     16set20        Pior que as notícias falsas (Pol Pot, etc)                        

                        286     23set20        A felicidade possível  (Schopenhauer)                                

                        287     30set20        Cogumelos venenosos                                          

                        288     07out20        O verão vermelho                                        

                        289     14out20        A candeia de Diógenes                              

                        290     21out20        Arte, verdade e política (Harold Pinter)                          

                        291     28out20        Outras formas de ver                               

                        292     04nov20       A consolação do dólar (Boécio)                           

                        293     11nov20       Escapatórias sem escape (Marte)                      

                        294     18nov20       Arendt: a tradição quebrada                   

                        295     25nov20       Natureza humana e verdade                   

                        296     02dez20        Invisíveis ou irrelevantes (a solidão)                  

                        297     09dez20        Vacinas para a boa morte                         

                        298     16dez20        O politicamente (in)correto Marquês    

                        299     23dez20        Os canibais e a amiba                                 

                        300     30dez20        Os pés calçados  (a estupidez)                              

2021  2021

                        301     08jan21        O achatamento cultural                           

                        302     13jan21        Humanização do vírus                               

                        303     20jan21        Não ter nada e ser feliz                              

                        304     27jan21        Importância de nada dizer                         

                        305     03fev21        Caídos do céu                                                

                        306     10fev21        Caídos do céu 2                                            

                        307     17fev21        Futuro bloqueado                                        

                        308     24fev21        O Grande Recomeço                                   

                        309     03mar21       Elvis vs. Billie Holiday                                  

                        310     10mar21       Relatório final                                               

                        311     17mar21       Pecado no Paraíso                                       

                        312     24mar21       Aventuras                                                     

                        313     30mar21       São os factos, estúpido!  (a propriedade)  

                        314     07abr21        Pancadinhas de amigo                               

                        315     14abr21        Amazon, indicador do futuro                   

                        316     21abr21        Os que sabem, os que julgam saber      

                        317     28abr21        A fé como crédito                                        

                        318     05mai21       Sedução e pornografia                                

                        319     12mai21       O fim da história                                           

                        320     19mai21       As raças dependem dos donos colonialismo               

                        321     26mai21       As decisões que julgamos nossas            

                        322     02jun21        Sinais no presente                                        

                        323     09jun21        Pandemia da sociedade                              

                        324     16jun21        Grau zero da arte                                         

                        325     23jun21        Do bom comportamento                            

                        326     30jun21        Farinhas e sacos (experiências em humanos; Port Down)                                            

                        327     07jul21         Pascal vacinou-se                                         

                        328     14jul21         A moral dos contos morais                       

                        329     21jul21         Águas turvas                                                  

                        330     28jul21         Eureka                                                             

                        331     04ago21       A História encoberta (fascismo nos EUA)                                      

                        332     11ago21       Imersos na metalinguagem                       

                        333     18ago21       O mundo como probabilidade                

                        334     25ago21       Eu e a minha réplica                                  

                        335     01set21        Os piores dos cegos  (Afeganistão)                                 

                        336     08set21        A intimidade possível                                 

                        337     15set21        Quem imita quem?                                     

                        338     22set21        Fabricação de iluminados  (Afeganistão)                         

                        339     29set21        Genocídios maus e os outros (Nuremberga)                   

                        340     06out21        Dos tiros nos pés                                         

                        341     13out21        Grandes pequenas coisas                          

                        342     20out21        No Paraíso não havia agricultores            

                        343     27out21        A primeira globalização                             

                        344     03nov21       A primeira revolução industrial                

                        345     10nov21       O jogo escondido  (o pós-URSS)                                      

                        346     17nov21       O telefone esperto                                      

                        347     24nov21       Separados mas iguais                                 

                        348     01dez21        Nunca mais chega 2050                              

                        349     08dez21        Satíricon à americana                                 

                        350     15dez21        Melhor q estar morto é estar vivo           

                        351     22dez21        Quem o feio ama                                         

                        352     29dez21        O círculo do conhecimento                       

2022  2022 

                        353     05jan22        A tradição das festas                                 

                        354     12jan22        A forma de bem pensar                             

                        355     19jan22        O destino da América                                 

                        356     26jan22        Raciocínios divinos                                      

                        357     02fev22        A racionalidade da irracionalidade          

                        358     09fev22        O novo normal                                              

                        359     16fev22        Correr para ficar no mesmo sítio              

                        360     23fev22        A vida encontra sempre um caminho      

                        361     02mar22       Holocaustos imagináveis                            

                        362     09mar22       O maior de todos os males                        

                        363     16mar22       Vida como conto de fadas                         

                        364     23mar22       Huxley necessário para Orwell                 

                        365     30mar22       Falsidades com que vivemos                     

                        366     06abr22        O Fascismo Eterno                                       

                        367     13abr22        As outras vigilâncias                                   

                        368     20abr22        Invasão da Ucrânia                                     

                        369     27abr22        Intolerância                                                  

                        370     04mai22       O narcisismo das pequenas diferenças             

                        371     11mai22       Por quem dobram os sinos?                     

                        372     18MAI22      Quais são os desejos que importam?     

                        373     25mai22       Os pobres que não se veem                      

                        374     01jun22        Se pensa que está a ser manipulado…   

                        375     08jun22        Prometeu realizado                                    

                        376     15jun22        Eatherly, Dreyfus, Assange                        

                        377     22jun22        Aparências e realidade                               

                        378     29jun22        O funeral do dente de Lumumba             

                        379     06jul22         Os que acreditam morrer pela Pátria      

                        380     13jul22         Patriotismo, nacionalismo                         

                        381     20jul22         Mesa de jantar e televisor                         

                        382     27jul22         Quando o Sultão ia de amarelo                

                        383     03ago22       A teoria de Gaia                                           

                        384     10ago22       Bosch é bom                                                

                        385     17ago22       Ética acorrentada                                        

                        386     24ago22       Elogio da preguiça                                        

                        387     31ago22       História das Grandes Histórias                  

                        388     07set22        Agora que estás no poleiro (Eça de Queiroz)                      

                        389     14set22        Vícios privados, públicas virtudes            

                        390     21set22        Bilionários nazis                                           

                        391     28set22        Os novos romanos                                     

                        392     05out22        Porque existe o mundo                             

                        393     12out22        O rabo de fora dos gatos                            

                        394     19out22        Os homens da 1ª cidade                                                                

                       395     26out22        Gasoduto ao fundo                                   

                        396     02nov22       A economia dos economistas                     

                        397     09nov22       Música não só no coração                          

                        398     16nov22       Envelhecimento desigual                           

                        399     23nov22       Realidade como FC: os Muskes                

                        400     30nov22       Os murmúrios da Terra

401     07dez22        As crenças nazis                                             

                        402     14dez22        Vamos para Marte                                      

                        403     21dez22        A inocência dos crimes de guerra            

                        404     28dez22        Às prostitutas do Café Photo                    

2023   2023

                        405     04jan23        Cento e cinquenta                                      

                        406     11jan23        Procedimentos para a eternidade          

                        407     18jan23        Arte como mediadora  (Kant)                  

                        408     25jan23        Que será, será                                             

                                                                    

                                                          

           

                       

 

                                                         

                                    

(411) Escritos (Jun2015/ 25Dez2019)

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Índice cronológico dos artigos publicados no blog:

 

2015 2015

  1. 02JN2015 Arte contemporânea
  2. 02JN2015 Passado, presente, futuro: fator JC
  3. 05JN2015 Pintar a ternura
  4. 14JN2015 O Estado social dos ricos
  5. 21JN2015 Face Book: livro de rosto
  6. 28JN2015 Cristianismo como resistência à barbárie
  7. 04JL”015  Distopia do presente 
  8. 10JL2015 A economia está bem, o País é que está mal
  9. 17JL2015 No news, good news   (o paradoxo de Fermi)
  10. 20JU2015 Os intelectuais são sempre de direita
  11. 25JL2015 Todos nós fazemos filmes
  12. 31JL2015 Cristo “melhorado”                                      

  13. 04AG2015  Sobre viagens e férias                                 

  1. 09Ag2015 Viagra e o paradoxo sexual                        
  2. 14Ag2015 As Mónicas e os Mónicos  (pensamentos de gestores)
  3. 19Ag2015 A vida é o preço que pagamos                  
  4. 24Ag2015 Grécia: o local divino                                    
  5. 29Ag2015 O diabinho do corpo                                    
  6. 03Set2015  Os nossos muros, muralhas e murinhos                       
  7. 09Set2015 Porque Caim não foi punido?  (gás nas guerras)                      
  8. 13Set2015 Doc de um tempo ausente (1)   (o Credo)            
  9. 18Set2015   Doc tempo ausente (2)  (M. L. King e Lumumba)                                 
  10. 23Set2015   Corn flakes e masturbação                                        
  11. 30Set2015   Fazer ou não fazer                                                       
  12. 07Out15       Vida da moda, moda da vida                                    
  13. 14Out15 As santas perversões                                                 
  14. 21Out15 Antecedentes consequentes    (antissemitismo)                                 
  15. 28Out15        O petróleo do pequeno almoço                                
  16. 04Nov15 Da merda e seus companheiros                                
  17. 11Nov15 Onde o denso flutua                                                      
  18. 18Nov15 A cartilha do fundamentalismo                                  
  19. 25Nov15 O achatamento como dominação                               
  20. 02Dez15 Avatar, cópia da realidade                                                      
  21. 09Dez15 Costuras que não se querem visíveis  (a coca da Coca-cola)                         
  22. 16Dez15 O fim do tempo inglês                                                      
  23. 23Dez15 Nem como Zômbis nos safamos                                    
  24. 30Dez15 A rãzinha e a andorinha                                                                                                                                                                  

2016    2016

  1. 06Jan16 A verdade como processo                                               
  2. 13Jan16 Big Data, big shit                                                                
  3. 20Jan16 Tudo azul, tudo muito azul    (Luz no fim do túnel)                                         
  4. 27Jan16 A vida da morte                                                                
  5. 03Fev16       Dinheiro de ladrão                                                  
  6. 10Fev16        Quem corre por gosto                                            
  7. 17Fev16        Em busca do tempo perdido                                    
  8. 23Fev16         A água nossa                                                            
  9. 03Mar16        Era uma vez na América?                                      
  10. 09Mar16        Nazis nas escolas        (Experiências de Miliban)                                             
  11. 16Mar16        Nazis fora das escolas    (Primo Levi)                                         
  12. 23Mar16        Vida como obediência                                             
  13. 30Mar16        Autoridade pilar da sociedade                              

  

  1. 06Abr16         Delirante Brasil?                                                      
  2. 13Abr16          Engrenagem dos mundos  (Wells, o mal)                                    
  3. 20Abr16          A Mãe de todos os roubos                                     
  4. 27Abr16          Mover as regiões infernais (Abu Ghrabi)                                    
  5. 04Mai16         O cinema que temos                                              
  6. 11Mai16         Em busca do sentido perdido                               
  7. 18Mai16         Nascemos fora de tempo                                       
  8. 25Mai16         Pipilemos                                                                 
  9. 01Jun16         As forças que nós armamos                                  
  10. 08Jun16         Quem nos representa?                                           
  11. 15Jun16         Deriva das gaivotas lésbicas                                 
  12. 22Jun16         A mulher de César                                                 
  13. 29Jun16         A originalidade da cópia                                       
  14. 05Jul16          Mudar de dono: sim, não?                                   
  15. 13jul16           Equívocos da técnica                                               
  16. 21jul16           O problema não são os turcos                              
  17. 27jul16          Militarização da polícia                                         
  18. 02ago16        Poemas da colónia penal, 1971                            
  19. 09ago16        Mais poemas, Jorge de Sena                                                           
  20. 16ago16        Ainda poemas, Pedro Grabato Dias                               
  21. 19ago16        Mais poemas, Rui Knopfli                                            
  22. 24ago16       Jogos olímpicos                                                       
  23. 31ago16       Mundo como livro                                                  
  24. 06set16        Hipervigilância                                                        
  25. 14set16        Saltadores do tempo perdido                                
  26. 19set16        O. J. Simpson                                                              
  27. 23set16        Massacres e massacres                                         
  28. 28set16        Salamaleques                                                          
  29. 05out16        Psicopoder                                                                
  30. 120ut16        Reino do céu na Terra (Livro de Job)                                              
  31. 19out16       Jacarés e refugiados                                                   
  32. 26out16        Mães que morrem cedo                                         
  33.   02nov16     Lá vamos cantando e rindo                                         
  34. 09nov16       Gilgamesh                                                                  
  35. 16nov16       Fronteiras indefinidas da guerra                           
  36. 23nov16       Florzinhas voltadas para o sol                                
  37. 30nov16       A captura da democracia (Barthes, Steve Banon)                                   
  38.   07dez16      Os últimos dos homens                                             
  39. 14dez16        Blade Runner                                                              
  40. 21dez16        O faroeste instalado (riqueza e democracia)                                                   
  41. 28dez16        Pai Natal com maiúsculas                                          

     2017                  2017

  1. 04jan17         O quinto mandamento                                               
  2. 11jan17         Que fazer com as pontas soltas?                              
  3. 18jan17         Revolucionários                                                         
  4. 25jan17         Os  cães não ladram                                                
  5. 01fev17        Os rabinhos dos canadianos                                   
  6. 08fev17        12 junho: Loving day                                                
  7. 15fev17        Conhecimento como obstrução                              
  8. 22fev17        Violência do amor                                                      
  9. 01mar17      O pai primitivo                                                            
  10. 08mar17      Corações cheios de música                                     
  11. 15mar17      Feira de misérias  (Act of killing, Indonésia)                                                    
  12. 22mar17       O Futurismo presente                                                  
  13. 29mar17       Fábricas de papas e bolos
  14. 05abr17         O nada que somos                                                 
  15. 12abr17         Interpretes das interpretações (Antígona)                           
  16. 19abr17         Matar, mas com ética                                            
  17. 26abr17         Ilusão ética                                                               
  18. 03mai17         Cidades de 18 milhões                                           
  19. 10mai17         A “ordem natural” do negócio (leis sobre a raça)                             
  20. 17mai17         Madoff: ganância sistémica                                   
  21. 24mai17         História de Pi                                                            
  22. 31mai17         As mulheres querem-se submissas                     
  23.   07jun17        Redescoberta da humanidade                              
  24. 14jun17         Ecofeminismo                                                          
  25. 21jun17         Ecologias restantes                                                  
  26. 28jun17         Donos da inevitabilidade  (globalização)                                     
  27. 05jul17           Josefina cantora                                                       
  28. 12ul17            Bonitinhos e limpinhos                                             
  29. 19jul17           Regresso ao paraíso                                               
  30. 26jul17           O senso comum                                                      
  31. 02ago17         Cambada de comunistas                                        
  32. 09ago17         Poesia segundo O Paz                                            
  33. 16ago17         Manual de sobrevivência, dos chocolates           
  34. 23ago17         A Bíblia da Mulher                                                  
  35. 30ago17         Palantir: o que vê de longe  (predizer o crime)                                 

 

  1. 06set17          Mississipi Goddam                                                 
  2. 13set17          Todos nós comemos palha  (Obsolescência)                                 
  3. 20set17          Cristianização do povo português                       
  4. 27set17          Os ovos da serpente                                              
  5. 03out17         Torradas com margarina                                       
  6. 11out17         A Ciência da fé                                                        
  7. 18out17         A nudez das elites                                                   
  8. 25out17         Pensamento científico                                           
  9. 01nov17         Vida como arte de perder                                     
  10. 08nov17         Fake news, algoritmos e ganância                        
  11. 15nov17         Dos indignos e indignados, Galeano                   
  12. 22nov7           Os génios malignos (Bin Laden)                                               
  13. 29nov17         Os génios benfeitores (D. Pedro)                                            
  14. 06dez17         Caídos do céu  (Líbia, Gadafi)                                                        
  15. 13dez17         Vias para a imortalidade (estoicismo, cristianismo)                                      
  16. 20dez17         Natal como conforto da visão reduzida             
  17. 27dez17         Do todo e das partes                                              

 

             2018     2018    

 

  1. 03jan18          A felicidade do absurdo                                     
  2.   10jan18         Vestidas para matar                                            
  3.   16jan18         A era do camelo                                                    
  4.   24jan18         Relatório da pobreza                                            
  5.   31jan18         Paradigma                                                              
  6. 07fev18         Expulsados e bastardos                                        
  7.   14fev18        Os bosões da Saramago                                        
  8.   21fev18       Formigas cabecinhas pensadoras                         
  9.   28fev18      A destruição do mundo finito                              
  10.   07mar18      Amor de relógio de pulso                                    
  11.   14mar18       As máscaras das oligarquias                            
  12.   21mar18      Biodiversidade                                                    
  13.   28mar18      Como fazer amigos                                            
  14.   04abr18       Teorias                                                                 
  15.   11abr18       Os novos alquimistas  (IA, etc)                                    
  16.   18abr18       Gato escondido na sustentabilidade           
  17.            25abr18       A história que a sociedade nos conta  (silêncio)        
  18. 02mai18      Maio 68 e Deleuze                                         
  19. 09mai18         Billie Holiday e os Rosenberg                     
  20. 16mai18         Cultura como sujeição política                  
  21. 23mai18         Os direitos da força  (Gaza, Palestina)                                    
  22. 30mai18         Teologia do consumo                                   

                        166     06jun18        A sociedade do “até quando”                    

                        167     13jun18        As figuras negras de Atenas                     

                        168     20jun18        O que é ser mexilhão   (humano)                         

                        169     27jun18        A saga do mexilhão virtual (novos humanos)                       

                        170     04jul18         Cultivando narcisos                                     

                        171     11jul18         A inteligência da I.A.                                   

                        172     18jul18         I.A. como desculpa                                      

                        173     25jul18         Viver feliz, Descartes                                  

                        174     01go18         Delirante Brasil?                                          

                        175     08ago18       Para lá do Equador                                     

                        176     15ago18       Amor segundo Paulo                                  

                        177     22ago18       Vida e vida boa                                            

                        178     29ago18       Dinheiro mau e dinheiro bom                  

                        179     05set18        O homem como problema (alma imortal)                      

                        180     12set18        Serena Bolton Simpson (Trib Internacional)                              

                        181     19set18        A mentira da verdade                                

                        182     26set18        Elogio da preguiça                                      

                        183     03out18        A burca de Platão                                        

                        184     10out18        Nada de novo no admirável  (Huxley)                    

                        185     17out18        Quando Harriet encontra J. S. (Mill)                

                        186     24out18        Os carros autónomos dos samaritanos                                      187     31out18        Frases feitas   (sobre pobres)                                              

                        188     07nov18       Éticas                                                             

                        189     14nov18       Ato cultural de limpar o rabo                 

                        190     21nov1          A formatação de Archie Bunker               

                        191     28nov18       Pornografia                                                  

                        192     05dez18        Emigrar para o Palácio de Cristal             

                        193     12dez18        Vestir a camisola                                         

                        194     19dez18        A Shermanização como solução               

                        195     27dez18        O barro dos artistas (Picasso, as mulheres)                                  

2019  2019

           

                        196     02an19         Tudo é vão, tudo é em vão (Eclesiastes)                         

                        197     09jan19        A utilização do livre arbítrio                       

                        198     16jan19        A culpa do homem                                     

                        199     23jan19        Cuidado com o que acreditam (Iraque, etc)                 

                        200     30jan19        Ética não é conhecimento                         

                        201     06fev19        Macacos e galhos  (pornografia, etc)                                      

                        202     13fev19        O homem é uma invenção                        

                        203     20fev19        Razões que a razão desconhece              

                        204     27fev19        O aminão-mor apanhado (Bezos)                         

                        205     06mar19       Dois minutos para a meia-noite                      

                        206     13mar19       Hitler deu muito nas vistas (esterilização)                       

                        207     20mar19       Blood, Sweat e a Boeing                           

                        208     27mar19       O universo masculino. (Rosa Luxemburgo)

                        210     03abr19        O direito à conquista                                 

                        209     10abr19        A ciência encontra …                              

                        211     17abr19        Economia de vigilância                              

                        212     24abr19        Como não demos por isso?                      

                        213     01mai19       O rebanho humano                                    

                        214     08mai19       Os grandes poluidores                                

                        215     15mai19       Se eu tivesse um martelo (Nietzsche)                

                        216     22MAI19      Polícias no ar, avestruzes no chão          

                        217     29mai19       Ecologias revisitadas                                  

                        218     05jun19        As prisões do possível                                 

                        219     12jun19        Um só mundo ou um mundo comum     

                        220     19jun19        O abismo da liberdade (Lenine, NEP)                             

                        221     26un19         Maneiras de poder                                      

                        222     02jul19         Clarificando o económico (EUAxChina)               

                        223     10jul19         Os refugiados do Verão                              

                        224     17jul19         A albarda e os donos                                   

                        225     24jul19         Saltemos, permanecendo                         

                        226     31jul19         O futuro da civilização                                

                        227     07ago19       Préviventes ou présobreviventes?      

                        228     14ago19       Raízes do ecofascismo  (EUA)                          

                        229     21ago19       O erro do sistema somos nós                

                        230     28ago19       Os novos filósofos da felicidade            

                        231     04set19        Como nos consumimos  (Lipovetsky)                         

                        232     11set19        Das necessidades quotidianas                

                        233     18set19        Beam me up!                                               

                        234     25set19       Gatos escondidos  (nova direita)                                     

                        235     02out19        A intencionalidade das formigas             

                        236     09out19        Uns governam o mundo, outros são o mundo (Pessoa)      

                        237     16out19        Um espetáculo acerca de nada               

                        238     23out19        A idade do mal radical                               

                        239     30out19        A essência da Europa                                 

                        240     06nov19       Meritocracia como instrumento              

                        241     13nov19       Encanar a perna à rã   (aquecimento global)                                

                        242     20nov19       A simulação perfeita  (transhumanismo)                                 

                        243     27nov19       Para quê ter filhos?                                      

                        244     04dez19        Manual para se ter razão                          

                        245     11dez19        Quais humanos?  (tortura; BadenMeinhoff)                                       

                        246     18dez19        Como enganar o clima                               

                        247     25dez19        Regresso às cavernas                                 

 

 

(410) O legado da ‘guerra justa’

Tempo estimado de leitura: 8 minutos.

 

A teoria da guerra justa parte do princípio que a guerra, apesar de ser terrível, será sempre menos terrível se travada com a conduta certa, nem sempre sendo a pior opção.

 

Guerra justa, diz o nosso Isidoro, é a que se faz para reaver o que é nosso, ou para repelir os inimigos, bispo do Porto em 1147.

 

Guerra reacionária, é aquela na qual os oprimidos efetivamente lutam para proteger os seus próprios opressores, V. Lenine.

 

E no mundo em que vivemos até pode acontecer que a “guerra justa” nos conduza para uma “guerra nuclear”, mas que será certamente “justa”, na qual todos acabaremos por morrer cheios de razão.

 

 

 

 

 

O problema da sobrevivência, quer no aspeto da subsistência quer no aspeto da defesa, foi um problema que se deve ter posto aos primeiros grupos de humanos que se formaram. As justificações sobre quando e como se defenderem ou quando e como atacarem, seriam das decisões mais importantes, uma vez que diziam respeito à vida ou morte de pessoas ou de comunidades inteiras, pelo que quem as tomava teria de contar com o apoio implícito ou explícito do grupo e da anuência sempre presente dos deuses da época.

Mas à medida que a guerra se foi transformando em tradição, chefes militares, sacerdotes, chefes políticos, filósofos, teólogos, começaram a interessar-se por ela, sistematizando argumentos para melhor a entenderem. Para justificar as condições em que uma guerra pudesse vir a ser declarada e para que pudesse vir a ser travada com retidão, começaram por estabelecer critérios. É assim que aparece a “teoria da guerra justa” que acredita que a guerra, apesar de ser terrível, será sempre menos terrível se travada com a conduta certa, nem sempre sendo a pior opção.

Vão ser dois os grandes grupos a que estes critérios se dedicam: o primeiro trata do “direito de se ir para a guerra” (a moralidade de se decidir pela guerra), e o segundo com o “direito de conduzir a guerra” (como deverá ser moralmente conduzida, ou seja, quais as regras da guerra).

 

Com pequenas variações, todas as civilizações acabam por ter critérios quase idênticos para a declaração e condução da guerra.

No Antigo Egito, o faraó era quem tinha a legitimidade para declarar a guerra, em nome da vontade dos deuses. Normalmente antes de declararem guerra dirigiam-se aos templos para receberem inspiração divina ou auscultarem os sacerdotes.

Na China confuciana, a guerra era admitida como justa apenas como último recurso e se declarada pelo imperador. A justeza da decisão era medida pelo resultado da campanha.

Na Índia dos marajás, a guerra para ser justa estabelecia critérios de proporcionalidade dos meios, justeza dos meios (nada de setas envenenadas) e justeza de ânimo (não se atacar com raiva).

Na Grécia Antiga, a existência de uma força militar era tida como necessária para a autodefesa, mas não para a conquista: “A finalidade de se praticar o treino militar não tem que ver com vir a tornar escravos quem o não merece, mas para evitar que eles próprios venham a ser tornados escravos por outros”.

Na Roma Antiga, também a guerra era considerada como sendo potencialmente errada, proibida, e não do agrado dos deuses. Uma guerra justa necessitava de uma declaração ritual feita pelos sacerdotes disso encarregados, e a sua condução implicava o seguimento de deveres morais para com os seres humanos.

Com o Cristianismo, sujeito ao “Não matarás”, ao oferecimento da outra face para ser esbofeteada e à sua moral universalista segundo a qual todos os homens são irmãos, o problema da guerra foi particularmente estudado para evitar que a contradição se instalasse.

Os ensinamentos de Santo Agostinho e de São Tomás de Aquino vão conduzir à formulação do conceito de “guerra justa” ainda hoje utilizado pelos cristãos, salvo algumas pequenas correções.

 

No nosso caso, nação católica, a necessidade de se ter que dar uma justificação religiosa para a guerra pode ser apreciada, por exemplo, a quando da conquista de Lisboa aos mouros em 1147. D. Afonso Henriques, querendo obter a colaboração dos cruzados nórdicos que se dirigiam para a Palestina, encarregou o bispo do Porto de lhes mostrar que essa empresa era justa:

 

A piedade em favor de Deus não é crueldade. Fazei a guerra por zelo de justiça e não por impulso violento da ira. Ora a guerra justa, diz o nosso Isidoro, é a que se faz por reaver o que é nosso, ou para repelir os inimigos. E porque é uma coisa justa punir os homicidas e os sacrílegos e os envenenadores, a efusão do seu sangue não é um homicídio, como não é cruel quem destrói os cruéis. Quem mata os maus só no que eles são maus e o faz com justo motivo, é ministro do Senhor”.

 

Só quase duzentos anos depois é que em Portugal aparecem as primeiras obras dedicadas ao problema da guerra justa, com Fr. Álvaro Pais,  Estado e Pranto da Igreja (1332-35) e Espelho dos Reis (1341-44), seguindo evidentemente a tradição escolástica e as ideias expressas por Santo Agostinho e Tomás de Aquino.

Onde explicava que a guerra para ser justa, devia obedecer a cinco requisitos: persona (quem podia combater – excluía os eclesiásticos a quem só lhes era permitido exortar o príncipe e o povo), res (será ou não a guerra inevitável?), causa (é de facto a guerra o único meio para obter a paz?), animus (o que a dita? Deverá ser sempre a caridade e nunca o ódio, a ambição ou a vingança) e a auctoritas (quem a declara deve estar legitimamente investido no poder).

Contudo, D. João I, ou porque desconhecesse a obra de Álvaro Pais ou porque ela tivesse sido dedicada “ao ilustre e vitoriosíssimo” Afonso XI rei de Castela, ou porque não considerasse suficientes as razões aduzidas, antes da expedição a Ceuta quis saber se aquela guerra seria “serviço de Deus”, reunindo para isso pareceres de alguns príncipes letrados e doutores na Igreja.

Recordemos que D. João I era bastardo, iniciara uma nova dinastia, e devia desejar afirmar-se aos outros monarcas como de igual valimento, pelo que, entre outras coisas, resolvera armar os seus filhos cavaleiros em combate real numa luta contra os infiéis, algo que já há muito não se via nem se praticava naquela Europa, pelo que a expedição a Ceuta era particularmente importante e todos os cuidados tinham de ser acautelados.

A resposta que lhe chegou, depois de assinalarem que Justiniano e os seus jurisconsultos aconselhavam a guerra contra os infiéis e que o Santo Padre dava absolvição perpétua a quem “dereitamente morresse guerreando os infiéis”, foi a seguinte:

Saiba vossa mercê que o estado militar não he por outra coisa tão louvado entre os cristãos, como por guerrearem os infiéis, ca não he necessário nem há hi mandamento de nosso Senhor Deus que façamos guerra a nenhuns cristãos, antes nos encomenda que nos amemos uns aos outros como irmãos que devemos ser em ele que he nosso Senhor, segundo he escrito por São Paulo em muitos lugares das suas epístolas”.

Em seguida afirmam que os reis devem evitar que os seus senhorios recebam queda, utilizando imaginação e conselho, e, se for preciso, devem combater contra os infiéis e até contra os cristãos. Porém, logo que a ofensa tenha sido reparada, “devem de deixar as armas e buscar a paz por quantas maneiras poderem”.

E concluíam:

Ora senhor, nem havemos de acrescentar mais soma de palavras, basta que nós aqui somos presentes por autoridade da santa escritura […] determinamos que vossa mercê pode mover guerra contra quaisquer infiéis assim mouros como gentios, ou qualquer outro que por algum dos artigos da santa fé católica, por cujo trabalho mereceres grande galardão do nosso Senhor Deus para a vossa alma”.

E assim se fez.

 

No reinado de D. Manuel, a nação continua fiel à doutrina tradicional sobre a guerra justa vinda de 1147. Como se pode ler no Regimento da viagem de Pedro Álvares Cabral para a Índia, só se devia fazer guerra contra os povos indígenas se estes, não querendo aceitar a evangelização, “negassem a lei de paz que se deve ter entre os homens para conservação da espécie humana, e defendessem o comércio e comutação, que é o meio por que se concilia e trata a paz e amor entre todo os homens, por este comércio ser o fundamento de toda a humana polícia”.

 

Vai ser no reinado de D. João III, que surge a teorização mais completa da doutrina portuguesa da guerra justa, no chamado Tratado da Guerra Que Será Justa. Preocupado com a guerra que estava a ser feita no Brasil contra os Índios, o monarca vai consultar (“provavelmente um teólogo ou jurisconsulto”, sugere Costa Brochado) o autor até hoje anónimo.

Segundo o autor, para uma guerra ser justa são necessárias três causas: “autoridade no que a move, causa justa e boa tenção”.

As causas só são justas se forem para reaver o que foi nosso ou para punir uma ofensa. No primeiro caso estavam as guerras empreendidas contra os Mouros de África e os turcos da Ásia, pois haviam ocupado terras pertencentes aos cristãos. Porém, a guerra feita contra os povos que habitassem terras nunca possuídas por cristãos era injusta, a não ser que tivesse como origem a segunda causa indicada.

E sobre a evangelização desses povos afirma que aqueles que forem cumprir essa missão devem ser bem recebidos e, só se não o forem, aos reis católicos será justo mover guerra contra os gentios ofensores. Neste caso, esta guerra tem como fim, não obrigar os gentios a aceitar a Fé cristã, mas sim a punir a ofensa.

Assim, quanto aos Mouros, como se sabia de antemão que não aceitavam a evangelização, qualquer guerra movida contra eles seria justa. Quanto aos Gentios, só depois de saber que eles não querem receber os pregadores. Sugere ainda não ser conveniente enviar tropas com os missionários, sendo preferível que sejam acompanhados por “homens de bem com modo de honesto comércio e pacífica comunicação”.

 E no respeitante aos ocupantes de terras que nunca houvessem sido de Cristãos ou que nunca tivessem causado dano aos mesmos?

O autor não considera justa a guerra contra os pecadores e contra a natureza, pois que pecado tão grave como esse é para os cristãos o pecado mortal e não perdiam estes o domínio do que tinham pelo facto de o cometerem: não há “lei divina que prive os infiéis bárbaros do que eles por justo título positivo possuem, ainda que idólatras e infiéis”.

Refuta assim a ideia que seja justa a guerra contra os Infiéis apenas porque com ela estes poderiam alcançar os bens da civilização.

 

Vejamos a prática:

 

Quando os grandes capitães das expedições de navios das nações europeias dos séculos XV e seguintes desembarcavam em terras povoadas e com riquezas à vista, o padrão de conquista que se lhe seguia era normalmente sempre o mesmo: a leitura de medidas legais inventadas que serviam de justificação para a invasão, a declaração de posse do território, e a fundação de uma cidade para legitimar e institucionalizar a conquista.

Escreviam depois aos reis para lhes assegurar que tudo fora feito de acordo com os desejos expressos pelos monarcas, e que os povos conquistados se encontravam à disposição para serem comandados e para trabalharem, plantarem, e fazerem tudo o que fosse necessário, para construírem uma cidade, e para serem ensinados a vestirem-se e a adotarem os costumes cristãos.

 Para que tudo fosse feito de acordo com as “normas”, antes de entrarem em combate com os indígenas, os soldados liam-lhes os Éditos Monárquicos (Requerimento), onde se declarava que os conquistadores estavam investidos com a autoridade de Deus, do papa, e do rei, e que os povos nativos seriam seus vassalos subordinados à sua autoridade.

Desses éditos constava também a enumeração das penas que os indígenas sofreriam se não o cumprissem (tipos de tortura, incêndio das vilas, enforcamento de mulheres na praça pública, e outros). Tudo isto “explicado” numa língua e linguagem que os indígenas não entendiam.

Normalmente, estes éditos acabavam dizendo:

 

Vou fazer-lhes todo o mal e causar-lhes todos os prejuízos que um Senhor faria a um vassalo que não lhe obedecesse ou recebesse. E declaro-vos solenemente que todas essas mortes e estragos resultantes serão sempre culpa vossa devido às vossas falhas e não de Sua Majestade, nem minha, nem dos homens que comigo vieram”.

 

 Citando o missionário dominicano espanhol Frei Bartolomeu de las Casas (1474? -1566), em O paraíso destruído: a sangrenta história da conquista da América Espanhola:

 

Após os europeus se terem libertado do dever de os informar, o campo ficava aberto para a pilhagem e escravatura”.

 

Atravessemos vários séculos e numerosas guerras e ainda hoje o Compendio da Doutrina Social da Igreja de 2004, desenvolve assim a doutrina da guerra justa no capítulo 11, parágrafos 500 a 501:

 

    “Se esta responsabilidade [de manter a paz, fazer a guerra] justifica a posse de meios suficientes para exercer este direito de defesa, os Estados têm ainda a obrigação de fazer todo o possível "para garantir que existam condições de paz, não apenas no seu próprio território, mas em todo o mundo". É importante lembrar que “uma coisa é travar uma guerra de autodefesa; outra é tentar impor a dominação a outra nação. A posse de potencial de guerra não justifica o uso da força para prosseguir objetivos políticos ou militares."

   

Estas são as doutrinas que continuam em vigor e nas quais todos se baseiam para justificar as suas guerras justas quando ganham.

 

Para tentar fugir a esse espartilho, Vladimir Lenin vai começar por dizer que as guerras justas compartilham todas a característica de serem de caráter revolucionário:

 

"Aos trabalhadores russos coube a honra e a sorte de serem os primeiros a iniciar a revolução - a grande e única guerra legítima e justa, a guerra dos oprimidos contra os opressores".

 

Ao definir estas duas categorias opostas em termos de classe, Lenin evitou a interpretação mais comum de considerar uma guerra defensiva como justa ("quem deu o primeiro tiro?"). Pelo que o lado que iniciasse as agressões ou o que tivesse uma razão de queixa ou qualquer outro fator comumente considerado como causa de guerra, não importava.

Para ele era claro que se um lado estivesse a ser oprimido pelo outro, a guerra contra o opressor seria sempre, por definição, uma guerra defensiva.

Qualquer guerra em que não se verificasse essa dualidade de oprimido e opressor seria sempre uma guerra reacionária, injusta, na qual os oprimidos efetivamente lutam para proteger os seus próprios opressores:

 

" Imaginem uma guerra entre um senhor de 100 escravos contra um senhor de 200 escravos por uma distribuição mais "justa" de escravos. Claramente, a aplicação do termo guerra "defensiva", ou guerra "para defesa da pátria" seria historicamente falso, e na prática seria um puro engano do povo, dos filisteus, dos ignorantes, pelos astutos senhores de escravos. É desta forma que a burguesia imperialista de hoje engana os povos por meio da "ideologia nacional" e do termo "defesa da pátria" na atual guerra entre senhores de escravos para fortalecer a escravidão."

 

 A cortina foi entreaberta, mas a peça continua a mesma. Recordemos, por exemplo, a recente guerra entre dois países ditos comunistas, a China e o Vietname: quem é o opressor e quem é o oprimido?

 

A teoria da guerra justa não apareceu para evitar a guerra, mas sim para que a guerra se efetuasse segundo as condições estabelecidas pelos potenciais vencedores.

Pelo que no mundo em que vivemos até pode acontecer que a “guerra justa” acabe por nos conduzir a uma “guerra nuclear”, mas que será certamente “justa”, na qual todos acabaremos por morrer cheios de razão.

 

 

(409) Crimes de guerra e guerra sem crimes

O TEMPO EM QUE VIVEMOS 438 Crimes de guerra e guerra sem crimes

Tempo estimado de leitura: 8 minutos.

 

Não devemos esquecer que os padrões com que hoje julgamos os acusados serão os padrões com que viremos a ser julgados amanhã, Robert H. Jackson, procurador dos EUA no 1º Tribunal de Nuremberga.

 

As entidades em conflito devem sempre em qualquer caso distinguir entre civis e combatentes. Os ataques só podem ser dirigidos contra combatentes. Os ataques não podem ser dirigidos contra civis.

 

As tropas russas têm-no feito nesta guerra na Ucrânia. E isto porque não poderão ser julgadas, porque, tal como os americanos, não ratificaram o tratado do TPI sobre crimes de guerra.

 

Um estado de guerra permanente cria burocracias complexas, sustentadas por políticos complacentes, jornalistas, cientistas, tecnocratas e académicos, que servem obsequiosamente a máquina de guerra.

 

 

 

 

Na História da Guerra do Peloponeso, começada a escrever já lá vão 2.400 anos (431 a. C.), Tucídides pôs os poderosos Atenienses a explicar aos derrotados e impotentes Melitanos, a razão para o genocídio que se lhe seguiu:

 

 “o direito, de acordo com o que se passa no mundo, apenas se discute entre os que são igualmente poderosos, porquanto os mais fortes fazem o que podem e os fracos sofrem o que têm de sofrer”, (capítulo XVII, Décimo sexto Ano da Guerra, A Conferência Melitana, O Destino de Melos).

 

Com o aproximar do fim da 2ª Guerra Mundial, começou a pôr-se o problema de como responsabilizar os criminosos de guerra pelas ações cometidas. A constituição de um Tribunal Internacional para os julgar seria a solução mais evidente, só que o problema era muito complicado não só pela não existência de uma legislação internacionalmente aceite sobre crimes de guerra, investigação e verificação a serem conduzidas, procedimentos a serem seguidos, esferas de influência, etc.

Como o tempo (e as espectativas e as intenções) urgia, foi decidido constituírem-se dois Tribunais Militares Internacionais, um para julgar os crimes dos nazis alemães e outro para os nazis japoneses.

 

As acusações apresentadas eram quatro: (1) crimes contra a paz (isto é, planeamento, iniciação e condução de guerras de agressão em violação de tratados e acordos internacionais), (2) crimes contra a humanidade (isto é, extermínios, deportações e genocídio), (3) crimes de guerra (ou seja, violações das leis de guerra) e (4) “um plano comum ou conspiração para cometer” os atos criminosos contidos nas três primeiras acusações.

 

A autoridade do Tribunal Militar Internacional para conduzir esses julgamentos decorreu do Acordo de Londres de 8 de agosto de 1945. Nessa data, representantes dos Estados Unidos, Grã-Bretanha, União Soviética e do governo provisório da França, assinaram um acordo que incluía uma autorização para que um Tribunal Militar Internacional pudesse conduzir julgamentos dos principais criminosos de guerra do Eixo cujos crimes não necessitassem de ter localização geográfica específica. Mais tarde, outras 19 nações aceitaram as disposições deste acordo, sendo admitidas como observadoras.

 

A primeira sessão, sob a presidência do representante soviético, Gen. I.T. Nikitchenko, realizou-se a 18 de outubro de 1945, em Berlim. Foram acusados 24 ex-líderes nazis ​​por perpetuarem crimes de guerra, e ainda vários grupos (como a Gestapo, a polícia secreta nazi) acusados ​​por terem caráter criminoso. A partir de 20 de novembro de 1945, todas as sessões do tribunal passaram a ser realizadas no Palácio da Justiça em Nuremberga.

Após 216 sessões, a 1 de outubro de 1946, foi proferido o veredicto de 22 dos 24 réus originais (Robert Ley cometeu suicídio enquanto estava na prisão, e as condições físicas e mentais de Gustav Krupp von Bohlen und Halbach impediram que ele fosse julgado). Três dos réus foram absolvidos: Hjalmar Schacht, Franz von Papen e Hans Fritzsche. Quatro foram condenados a penas de prisão que variaram de 10 a 20 anos: Karl Dönitz, Baldur von Schirach, Albert Speer e Konstantin von Neurath. Três foram condenados à prisão perpétua: Rudolf Hess, Walther Funk e Erich Raeder. Doze dos réus foram condenados à morte por enforcamento. Dez deles - Hans Frank, Wilhelm Frick, Julius Streicher, Alfred Rosenberg, Ernst Kaltenbrunner, Joachim von Ribbentrop, Fritz Sauckel, Alfred Jodl, Wilhelm Keitel e Arthur Seyss-Inquart - foram enforcados a 16 de outubro de 1946. Martin Bormann foi julgado e condenado à morte à revelia, e Hermann Göring suicidou-se antes de poder ser executado.

 

Para além deste tribunal, foram ainda constituídos logo de seguida, entre dezembro de 1946 e abril de 1949, outros 12 subsequentes tribunais militares para julgar crimes de guerra cometidos por chefias do partido nazi, médicos, industriais, juízes, ministros e outros elementos de organizações nazis. Dos 3.887 casos, 3.400 foram abandonados, tendo sido presentes a tribunal 489, com 1.672 acusados, dos quais 1.416 foram condenados (200 foram executados, 279 condenados a prisão perpétua – embora em 1950 quase todos acabassem por serem soltos ao abrigo de uma amnistia).

 

Particular interesse tem também o caso do tribunal para julgar os crimes dos nazis japoneses (Tribunal de Tóquio) instaurado pelo General Douglas MacArthur, onde, devido ao encobrimento feito pelo próprio governo americano, os principais responsáveis pelos crimes horrendos da Unidade 731 (experiências com armas biológicas e químicas em humanos) não foram presentes à justiça, e onde devido aos então recentes bombardeamentos atómicos de Hiroxima e Nagasáqui se invocou que os pilotos japoneses não podiam ser punidos por bombardearem cidades dado os pilotos americanos terem feito o mesmo (“É horrível que aqui venhamos fazer valer as leis da guerra e, contudo, vejamos a cada dia como os Aliados a tenham vindo a violar”, juiz Rölling).

 

Premonitório o que disse o procurador-chefe americano do julgamento de Nuremberga, Robert H. Jackson:

 

Não devemos esquecer que os padrões com que hoje julgamos os acusados serão os padrões com que viremos a ser julgados amanhã.”

 

 

Os representantes dos Estados Unidos, da União Soviética, do Reino Unido e da França, que foram os arquitetos destes julgamentos, tinham como intenção a criação de um tribunal que viesse a servir de modelo para a responsabilização de guerras futuras. Ou seja, que as Nações Unidas viessem a estabelecer um tribunal permanente onde os criminosos de guerra que não pudessem ser julgados nos seus próprios países pudessem ser trazidos à justiça.

Este bem-intencionado desejo levou mais de meio século a ser concretizado, pois só em 1998 foi estabelecido o Tribunal Penal Internacional (TPI) quando 120 nações votaram a favor do Tratado de Roma, com 7 votos contra e 21 abstenções. Os sete votos contra foram da China, Estados Unidos, Iémen, Iraque, Israel, Líbia e Qatar.

 

Só em julho de 2002 é que se obtiveram as 60 ratificações necessárias para que o Tribunal pudesse formalmente funcionar. As primeiras ordens de prisão foram emitidas em 2005, tendo o primeiro julgamento tido início em 2012, sendo arguido o chefe rebelde congolês Thomas Lubanga Dyilo, acusado de crimes de guerra pela utilização de crianças soldados.

Até hoje, o Tribunal investigou casos no Afeganistão, República Centro-Africana, Costa do Marfim, Darfur, Sudão, República Democrática do Congo, Quénia, Líbia, Uganda, Bangladesh/Mianmar, Palestina e Venezuela. Além disso, a Procuradoria realizou investigações preliminares de algumas situações na Bolívia, Colômbia, Guiné, Iraque/Reino Unido, Nigéria, Geórgia, Honduras, Coreia do Sul, Ucrânia e Venezuela.

Das poucas condenações produzidas pode-se extrair algo que lhes é comum: incidem sempre sobre quem ratificou o Tratado, quem se deixou aprisionar, quem perdeu a guerra, ou seja, os perdedores.

 

Em 2005, o Comité Internacional da Cruz Vermelha (IRCC) sumarizou as regras às violações à lei que seriam consideradas crimes de guerra. A primeira regra especifica que “as entidades em conflito devem sempre em qualquer caso distinguir entre civis e combatentes. Os ataques só podem ser dirigidos contra combatentes. Os ataques não podem ser dirigidos contra civis.”

A segunda regra diz que “atos ou ameaças de violência cujas principais finalidades sejam o de espalhar terror entre a população civil, são proibidos.

 

Ou seja, bombardear alvos civis como mercados, prédios de apartamentos, ataques às instalações elétricas, assassinar residentes nas cidades ocupadas, tudo isso é proibido. E, no entanto, as tropas russas têm-no feito nesta guerra na Ucrânia. E fazem-no porque não poderão ser julgados, porque, tal como os americanos, não ratificaram o tratado do TPI sobre crimes de guerra.

 

Veja-se o caso dos EUA: em 2000, Bill Clinton assina o Tratado de Roma, mas o Senado nunca o ratificou. Em 2002, quando a administração Bush se preparava para a “guerra global ao terrorismo” (o que incluía a ocupação do Afeganistão e o programa global de tortura da CIA ), os EUA retiraram definitivamente a sua assinatura. Eis a explicação do então Secretário da Defesa, Donald Rumsfeld:

 

“…[As] disposições do TPI reivindicam a autoridade para deter e julgar cidadãos americanos - soldados, marinheiros, aviadores e fuzileiros navais dos EUA, bem como funcionários atuais e futuros - mesmo que os Estados Unidos não tenham dado o seu consentimento para serem vinculados ao tratado. Quando o tratado do TPI entrar em vigor neste verão, os cidadãos dos EUA estarão expostos ao risco de serem processados ​​por um tribunal que não presta contas ao povo americano e que não tem obrigação de respeitar os direitos constitucionais de nossos cidadãos”.

 

Mas para clarificar, em agosto desse ano o Congresso passou, e o Presidente Bush assinou, o American Servicemembers Protection Act, segundo a qual era “autorizado o uso da força militar para libertar qualquer cidadão americano ou de um país aliado que estivesse retido no TPI, localizado em Haia”, permitindo também que os EUA retirassem suporte militar a qualquer nação que participasse do TPI.

Aparentemente, os “direitos constitucionais” incluíam o direito a cometer com impunidade crimes de guerra. Mesmo que o cidadão viesse depois a ser julgado por esse crime num tribunal americano, ele tinha sempre muitas hipóteses de vir a contar com um perdão presidencial.

 

Na prática, eis um exemplo de como as coisas funcionam: em 2018, o procurador-chefe do TPI pediu formalmente que fosse aberto um inquérito sobre os crimes de guerra que estavam a serem cometidos no Afeganistão. Como os EUA não são membros do TPI, mas o Afeganistão é, o inquérito focou-se nos crimes cometidos contra os civis apenas por parte da forças talibans e do governo afegão.

Mas mesmo assim o procurador pretendeu investigar as participações sobre as alegadas intervenções da CIA e das forças militares americanas nos centros de detenção do Afeganistão em 2003/2004, pelo que planeou uma viagem aos EUA. O seu visto foi revogado (abril, 2019), impedindo-o de entrevistar quaisquer testemunhas, a que se seguiram sanções financeiras.

 

Como mais claramente explicou John Bolton, o Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, (https://www.whitehouse.gov/briefings-statements/protecting-american-constitutionalism-sovereignty-international-criminal-court/):

 

Os Estados Unidos usarão todos os meios necessários para protegerem os nossos cidadãos e os dos nossos aliados das perseguições injustas desse tribunal ilegítimo.

Nós não cooperaremos com o ICC. Nós não daremos qualquer assistência ao ICC. Não nos juntaremos ao ICC. Deixaremos que o ICC morra por ele próprio. Em qualquer dos casos, o ICC é já um morto para nós.

 

E mais, avisou que os Estados Unidos considerariam proceder à utilização de sanções contra os juízes, procuradores e todos os que cooperassem com a averiguação de tais provas, podendo inclusive chegarem a proibir a sua entrada nos EUA, congelarem as suas contas, e julgá-los em tribunais americanos.

 

Imagino que o mesmo farão os russos, os israelitas, os chineses, todos aqueles que se sentem poderosos perante os derrotados e impotentes (como já Tucídides explicara). Como já antes o fizeram ingleses (que quando eram donos do mundo, sempre que um qualquer seu cidadão era preso em qualquer parte do mundo, enviavam um barco de guerra para ameaçar os outros governos), franceses, espanhóis, portugueses, etc.

 

Eis o que o historiador inglês Edward Gibbon nos diz sobre o desejo do Império Romano por guerra sem fim:

 

“[O] declínio de Roma foi o efeito natural e inevitável da grandeza imoderada. A prosperidade amadureceu o princípio da decadência; a causa da destruição multiplicou-se com a extensão da conquista; e, assim que o tempo ou o acidente removeu os suportes artificiais, o estupendo tecido cedeu à pressão do seu próprio peso. A história da ruína é simples e óbvia; e, em vez de indagar porque foi destruído o Império Romano, deveríamos surpreender-nos por ele ter subsistido por tanto tempo.”

 

Um estado de guerra permanente como o que temos vivido quase sempre, cria burocracias complexas, sustentadas por políticos complacentes, jornalistas, cientistas, tecnocratas e académicos, que servem obsequiosamente a máquina de guerra.

Por exemplo, no caso dos EUA, no início deste mês, os Comités dos Serviços das Forças Armadas do Congresso e do Senado, nomearam oito comissários para rever a Estratégia de Defesa Nacional (NDS) de Biden, para “examinar as suposições, objetivos, investimentos em defesa, postura e estrutura da força, conceitos operacionais e riscos militares do NDS.”

A comissão, como Eli Clifton escreve no Quincy Institute for Responsible Statecraft, é “em grande parte composta por pessoas com ligações financeiras à indústria de armamentos e a empresas que têm contratos com o governo dos EUA, levantando questões sobre se a comissão poderá ter um olhar crítico para contratos que recebem US$ 400 bilhões dum orçamento de defesa de US$ 858 bilhões para o ano fiscal de 2023”.

É que a presidente da comissão, observa Clifton, é a ex-deputada Jane Harman (D-CA), que “faz parte do conselho de administração da Iridium Communications, uma empresa de comunicações via satélite que recebeu em 2019 um contrato de US$ 738,5 milhões por sete anos com o Ministério de Defesa.”

Chama-se a isto pôr a raposa no galinheiro para tomar conta das galinhas. Aparentemente não faltam raposas, galinhas e galinheiros. De todas as raças, credos, lugares e tempos.

 

Entretanto, ”a Ucrânia teve quase 18.000 baixas civis (6.919 mortos e 11.075 feridos). Também viu cerca de 8% das suas habitações destruídas ou danificadas e 50% da sua infraestrutura de energia diretamente impactada por frequentes cortes de energia. A Ucrânia necessita pelo menos US$ 3 bilhões por mês em apoio estrangeiro para manter a sua economia à tona, disse recentemente o diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional. Quase 14 milhões de ucranianos encontram-se deslocados - 8 milhões na Europa e 6 milhões internamente - e até 18 milhões de pessoas, ou 40% da população da Ucrânia, precisarão em breve de assistência humanitária. A economia da Ucrânia contraiu 35% em 2022, e 60% dos ucranianos estão agora condenados a viver com menos de US$ 5,5 por dia, segundo estimativas do Banco Mundial. Nove milhões de ucranianos estão sem eletricidade e água, com temperaturas abaixo de zero, diz o presidente ucraniano. De acordo com estimativas do Estado-Maior Conjunto dos EUA, 100.000 soldados ucranianos e 100.000 russos foram mortos na guerra em novembro passado.”

 

 

 

 

(408) “Que será, será!”

Tempo estimado de leitura: 9 minutos.

 

Segundo o Banco Mundial, os fundos atribuídos para a educação diminuíram, perto de 13,5 por cento.

 

Apesar de frequentarem a escola, 119,6 milhões de crianças não conseguem obter proficiência mínima em leitura e matemática nos graus elementares do ensino.

 

Pelo que talvez valha mais a pena investir na educação das novas gerações de crianças, deixando as outras para trás. Opção que os mercados entendem. “Surplus population”.

 

Até 1959 não existia nenhuma escola secundária na Guiné, isto apesar de Portugal a administrar desde 1588.

 

O exemplo da Educação Política para a Libertação na Guiné-Bissau entre 1963 e 1974, segundo a historiadora Sónia Vaz-Borges.

 

 

 

 

As Nações Unidas (NU) calcularam que em 2018 existiam 258 milhões de crianças em idade escolar que não frequentavam a escola (ou seja, uma em cada seis). Num estudo de junho de 2022, as NU verificaram que o número de crianças com dificuldades de educação triplicara desde 2016, passando de 75 milhões para os atuais 222 milhões:

 

Estes 222 milhões de crianças são apenas uma amostra das necessidades ao nível da educação: cerca de 78,2 milhões (54 por cento mulheres, 17 por cento com dificuldades funcionais, 16 por cento por deslocação forçada) não frequentam qualquer escola, e 119,6 milhões não conseguem obter proficiência mínima em leitura e matemática nos graus elementares do ensino, apesar de frequentarem a escola.”

 

Este é o panorama geral com que nos defrontamos. E, no entanto, os fundos atribuídos para a educação diminuíram, segundo o Banco Mundial, perto de 13,5 por cento. Apesar de nos países ricos os fundos atribuídos à educação terem já atingido os níveis de pré-pandemia, nos países mais pobres não só não alcançaram esse nível, como se interrogam se esse enorme esforço financeiro possa não compensar, na medida em que esses biliões de pessoas em causa ficarão sempre para trás (não recuperarão) e não conseguirão virem a ser contratados para empregados das empresas que se firmam no mercado.

 Pelo que talvez valha mais a pena investir na educação das novas gerações de crianças, deixando as outras para trás. Opção que os mercados entendem. “Surplus population”: aquilo que os outros são, e que nós acabaremos por ser.

 

Nem sempre foi assim. Olhemos, por exemplo, para o que nos diz a historiadora Sónia Vaz-Borges no seu estudo sobre a Educação Política para a Libertação na Guiné-Bissau entre 1963 e 1974.

Devo dizer que o foco posto na Guiné-Bissau deve-se a alguns fatores, nomeadamente o de os países colonizadores não encararem os povos desses territórios como seres com história e com necessidades educacionais idênticas às suas (exemplos: até 1959 não existia nenhuma escola secundária na Guiné, isto apesar de Portugal a administrar desde 1588; a história e experiências dos povos africanos não serem tidos em conta, nem ensinados) e à exemplaridade exportável do seu processo.

Passando agora ao estudo de Vaz-Borges que começa com uma citação de Amílcar Cabral:

 

[…] Hoje a educação visa o objectivo da realização plena do Homem, sem distinção de raças ou de origens, como um consciente e inteligente, útil e progressivo, integrado ao mundo e seu meio (geográfico, econômico e social), sem qualquer tipo de sujeição. Para isso e por isso, a questão da educação não pode ser tratada separadamente da questão econômica-social […] – Amílcar Cabral, 1951.

 

Num discurso proferido em uma assembleia em Londres, em outubro de 1971, Amílcar Cabral explicou a triste situação em que se encontrava a maioria da população (grandes níveis de empobrecimento e subdesenvolvimento, manifestados em altas taxas de mortalidade infantil, fomes cíclicas, altos percentuais de analfabetismo, falta de infraestruturas e serviços públicos, setores industriais subdesenvolvidos ou inexistentes):

 

a falta de proteínas e de muitos alimentos básicos impede o desenvolvimento do nosso povo. Em algumas regiões, houve uma taxa de mortalidade infantil de 80%. Ao longo da época áurea do colonialismo português tínhamos apenas dois hospitais com um total de 300 camas em todo o país e apenas 18 médicos, 12 deles em Bissau.

Quanto às escolas, eram apenas 45, e eram escolas missionárias católicas, ensinando apenas o catecismo. Havia 11 escolas oficiais para crianças assimiladas. Não havia escolas secundárias na [Guiné-Bissau] até 1959; agora existe uma. […] Havia apenas 2 mil crianças nas escolas em todo o país. E você pode imaginar o tipo de ensino. Foi uma decisão deliberada para impedir o desenvolvimento do nosso povo, tal como fizeram em Angola, Moçambique e outras colônias.”

 

O primeiro Congresso do PAIGC, conhecido como Congresso de Cassacá, ocorreu entre 13 e 17 de fevereiro de 1964 na área liberada do sul das florestas guineenses. As “áreas libertadas” ou “zonas libertadas” (termos frequentemente usados nos escritos do Partido) eram os principais territórios sob controle da organização; aqui, o acesso ou influência portuguesa era muito limitado e praticamente inexistente. Em 1971, dois terços do país eram governados pelo PAIGC.

[…] Nas diretrizes que Cabral redigiu para o Congresso, ficou destacado como, para “continuar o desenvolvimento vitorioso de nossa luta”, o PAIGC precisaria:

 

Criar escolas e desenvolver a instrução em todas as áreas libertadas. […] Melhorar o trabalho nas escolas existentes, evitar um número muito elevado de alunos que pode prejudicar o aproveitamento de todos. Criar escolas, mas ter em conta as possibilidades reais para evitar que depois tenhamos que fechar algumas escolas por falta de meios. […] Criar cursos especiais para formação e aperfeiçoamento de professores […] Criar cursos para ensinar a ler e a escrever aos adultos, sejam eles combatentes ou elementos da população. […] Criar, a pouco e pouco, bibliotecas simples nas zonas e regiões libertadas, emprestar aos outros os livros a que dispomos, ajudar outros a aprender a ler um livro, o jornal e a compreender aquilo que se lê.”

 

[…] Em janeiro de 1969, durante uma entrevista gravada na Conferência Internacional de Apoio aos Povos das Colônias Portuguesas e da África Austral, em Cartum, Cabral partilhou o conteúdo dessas conversas e os objetivos que pretendiam atingir:

 

Não podíamos mobilizar as pessoas dizendo-lhes “a terra deve pertencer a quem trabalha” porque aqui a terra não falta. Há toda terra a que se precisa. Era, pois, necessário encontrar formas apropriadas para mobilizar nossos camponeses, em vez de usar termos que nossa gente não podia ainda compreender. Nunca mobilizamos as pessoas com base na luta contra o colonialismo. Isso não dava nada. Falar da luta contra o imperialismo não dava nada entre nós.

Em vez disso, falamos uma linguagem direta e acessível a todos: ‘Por que lutamos nós? Quem és tu? Quem é teu pai? O que é que lhe aconteceu ao teu pai, até agora? O que é que se passa? Qual é a situação? Já pagaste os teus impostos? O teu pai já pagou os seus impostos? O que é que já viste desses impostos? Quanto ganhas com o teu cânhamo? Já pensaste no que lucras com teu cânhamo? E o trabalho que ele custou à tua família? Quem é que já esteve preso? Tu já estiveste preso?

É com esta base que se faz a mobilização.

Vais trabalhar na estrada. Quem te dá a ferramenta para trabalhar? És tu que a das. Quem te dá a comida? És tu que a dás. Mas quem anda pela estrada? Quem tem um carro? E a tua filha que foi violada por fulano – achas isso bem?”

 

[…] Sob a palavra de ordem “todos os que sabem devem ensinar aos que não sabem”, o PAIGC desenvolveu dois projetos educativos simultâneos, um para adultos e outro para jovens. Os objetivos subjacentes do desenvolvimento de sistemas educacionais nas áreas libertadas eram “destruir na nossa resistência, tudo quanto faça da nossa gente cachorros – homens ou mulheres – para deixarmos avançar, crescer, levantar, como as flores na nossa terra tudo quanto possa fazer da nossa gente seres humanos de valor”.

 

Entre 1963 e 1972, o PAIGC desenvolveu instalações educacionais para três grupos: jovens, adultos e guerrilheiros. Iniciativas educativas para adultos e guerrilheiros vinham sendo realizadas desde o trabalho de mobilização dos primeiros anos, mas foram fortalecidas e institucionalizadas nesse período com a criação de infraestrutura escolar e educacional. Escolas de Tabanca (em vilarejos) e internatos foram construídos em áreas libertadas, com exceção de dois internatos localizados em países vizinhos: a Escola Piloto, na República da Guiné, e a Escola Teranga, na República do Senegal.

As escolas do PAIGC no exterior eram coordenadas pelo Instituto Amizade, criado pelo Partido em 1965, com representações permanentes em Conacri e Dacar. Os estatutos do instituto descrevem a organização como não política e com “fins humanitários”, trabalhando em estreita colaboração com o departamento de educação das áreas libertadas da Guiné-Bissau. Funcionava, portanto, como uma “espécie de esboço de um Ministério da Educação” dentro da estrutura do Partido. O instituto coordenou todos os aspectos decorrentes das diretrizes do Partido, desde a gestão das escolas até o desenvolvimento de currículos e materiais, passando pela gestão e distribuição de bolsas no exterior.

Durante a luta de libertação, o PAIGC recebeu bolsas de estudo de países como Bulgária, Checoslováquia, Cuba, Hungria, Iugoslávia, República Democrática Alemã, Romênia, Estados Unidos e União Soviética. O instituto também era responsável por organizar e coordenar seminários para adultos, treinar quadros, educar trabalhadores do serviço social, como professores, e acompanhar o “rápido crescimento da vida escolar durante a luta de libertação”.

As estruturas educativas centrais do PAIGC foram desenvolvidas por meio de campanhas de mobilização mais amplas e processos educativos para crianças e jovens coordenados pelo Instituto Amizade. Havia também um grupo de instalações para adultos: Lar Sami em Ziguinchor e Lar de Dakar na República do Senegal, bem como o Lar do Bonfim (também conhecido como Lar de Conacri) na República da Guiné.

Eram centros multifuncionais que serviam como escritórios de representação do Partido para funções administrativas e políticas, pequenos hospitais e centros de recuperação para os feridos na luta armada e espaços educativos que ofereciam programas de alfabetização e cursos de educação política para aqueles que estavam se recuperando de ferimentos.

Em 1966, o Partido criou dois outros espaços para a população adulta e militar: o Centro de Reciclagem e Aperfeiçoamento de Professores e o Centro de Instrução Política e Militar de Madina do Boé. Em 1964-65, o sistema educacional do PAIGC tinha 50 escolas com 4 mil alunos no total nas áreas libertadas; isso aumentou para 127 escolas com 13.361 alunos e 191 professores em 1965-66, e para 159 escolas com 14.386 alunos e 220 professores em 1966-67.

Num relatório de 1973 sobre o desenvolvimento do sistema educacional do PAIGC entre 1963-1973, o número total de quadros e estudantes treinados do Partido nas zonas libertadas foi registrado da seguinte forma:

 

Hoje, o Partido dispõe de 164 escolas primárias em suas regiões libertadas, onde o ensino é ministrado por 258 professores, servindo um total de 14531 alunos, dos quais cerca de um terço são raparigas […] Hoje, em menos de dez anos, o PAIGC formou 36 quadros universitários, temos 46 quadros de educação técnica superior; 241 quadros de ensino profissional e especializado; 174 quadros políticos e sindicais; e 410 quadros na assistência sanitária. Além destes já formados, temos neste momento, a receberem no estrangeiro uma formação média e superior, 422 alunos, aos quais se juntarão mais 100 este ano.”

 

Uma abordagem militante para a educação

Muitos países africanos declararam sua independência na segunda metade do século XX, liderados por seus movimentos de libertação e em interação com as lutas anticoloniais e anti-imperialistas em todo o mundo. O PAIGC, juntamente com a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), e outros, foi profundamente influenciado pelas ideologias comunistas e socialistas. A adoção do termo militante, por exemplo, para identificar membros particulares do Partido foi extraída das estruturas revolucionárias dos contemporâneos internacionais do PAIGC.”

 

“[…] Até à publicação do primeiro manual escolar em 1966, os professores do PAIGC tinham que lecionar utilizando manuais e materiais coloniais. Por exemplo, os professores tinham uma dupla tarefa ao usar o manual de ortografia do português: além de fundamentos como o ensino do alfabeto, também cabia a eles interpretar criticamente a mensagem que os livros em português transmitiam e reformulá-la de forma mais relevante para o universo dos alunos.

No entanto, para que isso acontecesse, os próprios professores tiveram que passar por um processo próprio de descolonização para desconstruir e desmantelar o saber colonial que lhes foi imposto pelo governo português. Embora o Partido tenha desenvolvido cursos de formação de professores que abordassem temas como a pedagogia e a aquisição de competências pedagógicas, o processo de tornar-se professor militante caracterizou-se, em grande medida, pelo reinvestimento e reavaliação por parte dos professores da sua própria formação e conhecimento. Muitas vezes, isso acontecia por meio de aprendizados precoces em sala de aula junto com seus alunos.”

 

“[…] Os currículos desenvolvidos para a formação do aluno militante compreendiam diversas disciplinas, da matemática ao aprendizado da língua portuguesa, ginástica, artes, geografia, ciências, teatro e música. Entre 1966 e 1974, o PAIGC desenvolveu quatro manuais escolares para o 1º até o 4º ano e quatro manuais para o 5º e 6º anos. Os materiais incluíam um manual sobre a história geral da África, um sobre a história da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, outro sobre lições políticas e, finalmente, uma tradução de Uma Breve História da Sociedade Pré-Capitalista (o primeiro volume de um estudo de dois volumes escrito por D. Mitropolsky, Y. Zubritsky, V. Kerov e outros, em 1965, na Patrice Lumumba Friendship University, em Moscou, URSS). Os manuais escolares do PAIGC foram criados coletivamente por professores e outros militantes e impressos em Uppsala, na Suécia, pela tipografia Wretmans Boktryckeri.

O Partido também desenvolveu uma série de meios de comunicação, incluindo jornais como o Jornal Libertação e o PAIGC Actualités internacional, em língua francesa. Além disso, desenvolveram uma revista para jovens, Blufo – Órgão dos Pioneiros do PAIGC que também foi amplamente lida por adultos. Os discursos transcritos e escritos de Cabral também foram utilizados como material didático. Outra iniciativa do Partido foi a Rádio Libertação, que transmitia diariamente notícias sobre a luta e contribuía para o programa de educação de adultos do PAIGC.”

 

“[…] Ao contrário dos materiais do passado, que representavam cenas longínquas do Portugal colonial, esses novos materiais e processos de aprendizagem incorporaram a geografia, vida social e organização dos territórios onde a luta pela libertação estava ocorrendo. Já se encontravam textos com títulos como Vida na Tabanca e As Profissões, este último revelando a estrutura e a organização social local. Houve também um foco em explicações científicas do mundo natural. As aulas abordavam as maravilhas da natureza, como os oceanos e a riqueza da vida botânica. O objetivo era desmistificar os fenômenos naturais, tendo o cuidado de não colocar em questão as crenças religiosas dos alunos. Outro tema importante explorado foi como utilizar os recursos naturais para o desenvolvimento do país de forma sustentável.”

 

“[…] No início da luta, o Partido e seus militantes compreenderam o papel crucial e o poder da educação para cumprir os objetivos da luta de libertação. Isso os levou a colocar em prática ideias e iniciativas revolucionárias como:

  • Criar escolas nas zonas libertadas para jovens, adultos e combatentes. Além de ensinar a ler e escrever, e outras aprendizagens, as escolas enfatizavam o desenvolvimento de currículos de educação baseados nas realidades do povo e de sua luta.
  • Realizar campanhas de mobilização para educar e aumentar a consciência política da população.
  • Estabelecer a educação política como central no processo de libertação nacional e fundamentar a educação nas práticas anticoloniais e descoloniais.
  • Desenvolver currículos e materiais escolares que refletissem a realidade da África em relação a outras lutas internacionais com o objetivo de cumprir os objetivos da libertação total.
  • Valorizar a importância do trabalho dos professores, seu papel na vanguarda da luta e sua responsabilidade com o avanço do país.
  • Estabelecer redes internacionais de apoio educacional. Isso incluiu países como Cuba, Hungria, Iugoslávia, URSS, Romênia, República Democrática Alemã, Checoslováquia e Bulgária, onde os alunos podiam continuar seus estudos técnicos e superiores, bem como treinamento de quadros.
  • Produzir e publicar mídias por meio de suas próprias plataformas e canais de comunicação (jornais, revistas e rádios), que funcionaram como material educativo adicional ao longo da luta de libertação.”

 

Tudo isto, e o muito mais que o estudo contém, permite que Vaz-Borges conclua que:

 

“[…] A experiência do PAIGC de construir escolas na floresta, sua forma pioneira de educação política, o desenvolvimento de currículos emancipatórios específicos para seu contexto e o estabelecimento de redes internacionais de apoio a esse processo de educação são nosso legado e inspiração. São processos com os quais devemos aprender e avançar à medida que visualizamos e encenamos nossas lutas hoje.”

 

Para uma tentativa mais alargada de entendimento sobre o que se passou, se passa, e como se passou e se passa, convém recordar que a 20 de janeiro de 1973, Amílcar Cabral foi assassinadocom três tiros da PIDE (Polícia Internacional e Defesa do Estado Português)” junto à sua residência em Conacri.

Que a 18 de janeiro de 1995, o Fundo Monetário Internacional (FMI), a pedido do governo da Guiné-Bissau, introduziu o seu tão conhecido plano de austeridade para salvar a economia. O analfabetismo subiu para perto 50 por cento, segundo a UNESCO.

Para aqueles que veem a história como um movimento inexorável que, mais tarde ou mais cedo, acabará por conduzir a um destino certo, convém notar que, por vezes, o efeito da ação de um indivíduo pode mudar completamente essa inevitabilidade.

Recordemos por exemplo, para além dos casos atrás citados, a influência que teve para o processo de democratização que se lhe seguiu, o assassinato do almirante e Presidente todo poderoso do governo do já adoentado Franco em Espanha, Luis Carrero Blanco, por um atentado à bomba colocada pelo grupo separatista basco (ETA) à passagem da sua viatura no dia 20 de dezembro de 1973 (Operación Ogro, filme de Gillo Pontecorvo).

Dir-me-ão que mais tarde ou mais cedo tudo acabaria por conduzir à democratização em Espanha. Teoria que Doris Day certamente compartilharia: “Que será, será”.

 

 

 

 

 

 

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