Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(556) A eclosão dos ovos e a deslocação do Ocidente para a direita

Tempo estimado de leitura:7 minutos.

 

Explicação de Hitler sobre a sua posição geral relativamente à condução da guerra no Leste, como consta da Ata de 16 de julho de 1941.

 

Nunca mais deverá ser possível criar um poder militar a oeste dos Urais, A. Hitler.

 

Em 1957, 77% dos funcionários com cargos de responsabilidade no Ministério da Justiça alemão (ou seja, três em cada quatro) eram antigos membros do partido nazi.

 

 

 

A política de ocupação alemã-nazi foi determinada por considerações raciais-ideológicas e económicas. Ao mesmo tempo que vários gabinetes do partido e do Estado elaboravam planos para uma reorganização milenar da Europa sob a hegemonia alemã, a maioria dos territórios estava a ser administrada por regimes de ocupação mais ou menos provisórios, que apoiavam os esforços de guerra da Alemanha através da exploração económica das suas respetivas regiões. O método de subjugação escolhido e a severidade com que era aplicado dependiam diretamente da valorização racial que os nazis atribuíam à população residente – facto que explica a política de ocupação especialmente brutal na Europa de Leste.

Há uma importante ata (1) de Martin Bormann de uma reunião no Quartel-General do Führer em 16 de julho de 1941 que inclui a explicação de Hitler sobre a sua posição geral em relação à condução da guerra no Leste, que ajuda a entender o que se passava na altura e também muito do que se passa hoje:

 

Top Secret

Quartel-General do Führer, 16 de julho de 1941

 

Uma conferência com a presença do Reichsleiter Rosenberg, do Ministro do Reich Lammers, do Marechal de Campo Keitel, do Reichsmarschall [Göring] e de mim foi realizada hoje por ordem do Führer às 15h nos seus aposentos. A conferência começou às 15h00 e, incluindo uma pausa para café, durou até aproximadamente às 20h.

 

A título de introdução, o Führer sublinhou que desejava, antes de mais, fazer algumas declarações básicas. Diversas medidas eram agora necessárias; isto foi confirmado, entre outros acontecimentos, por uma afirmação feita num insolente jornal de Vichy de que a guerra contra a União Soviética era a guerra da Europa e que, por isso, deveria ser conduzida para o bem da Europa no seu todo. Aparentemente, o jornal de Vichy pretendia com estas insinuações dizer que não deveriam ser apenas os alemães que beneficiariam desta guerra, mas que todos os estados europeus deveriam beneficiar dela.

 

Era essencial que não proclamássemos os nossos objetivos perante o mundo inteiro; além de que isso não era necessário, porque o principal era que nós próprios soubéssemos o que queríamos. Em nenhum caso o nosso próprio caminho deveria ser dificultado por afirmações supérfluas. Tais declarações eram supérfluas porque podíamos fazer tudo onde tivéssemos o poder, e o que estivesse para além do nosso poder de qualquer forma não seríamos capazes de o fazer.

 

O que dissemos ao mundo sobre os motivos das nossas medidas deve ser condicionado, por isso, por razões táticas. Devemos proceder aqui exatamente da mesma forma que procedemos nos casos da Noruega, Dinamarca, Holanda e Bélgica. Nestes casos também não dissemos nada sobre os nossos objetivos, e se fôssemos inteligentes, continuaríamos da mesma maneira.

Enfatizaremos, então, novamente, que fomos obrigados a ocupar, administrar e assegurar uma determinada área; era do interesse dos habitantes que providenciássemos ordem, alimentos, tráfego, etc., daí as nossas medidas. Não se deve perceber que, com isto, um acordo final esteja a ser iniciado! Podemos, no entanto, tomar todas as medidas necessárias — fuzilamentos, realojamentos, etc. — e tomá-las-emos.

 

Mas não queremos transformar nenhum povo num inimigo prematura e desnecessariamente. Portanto, agiremos como se apenas quiséssemos exercer um mandato. Deve ficar-nos claro, porém, que nunca nos retiraremos destas áreas.

Assim, devemos agir:

1.º Não fazer nada que possa obstruir a resolução final, mas prepararmo-nos para ela apenas em segredo;

2.º Enfatizar que somos libertadores.

Em particular:

A Crimeia deve ser evacuada por todos os estrangeiros e povoada apenas por alemães.

 

Da mesma forma, a antiga parte austríaca da Galícia tornar-se-á território do Reich.

 

As nossas relações com a Roménia são boas atualmente, mas não se sabe como serão no futuro. Devemos considerar isto e traçar as nossas fronteiras de acordo com isso. Não devemos depender da boa vontade dos outros povos; devemos organizar as nossas relações com a Roménia de acordo com este princípio.

 

Em princípio, temos agora de enfrentar a tarefa de dividir o bolo gigante de acordo com as nossas necessidades, para sermos capazes de: primeiro, dominá-lo; segundo, administrá-lo; e terceiro, explorá-lo.

 

Os russos deram agora ordem para a guerra de guerrilha atrás da nossa frente. Esta guerra de guerrilha novamente traz-nos alguma vantagem; permite-nos exterminar todos os que se opõem a nós.

 

Princípios:

 

Nunca mais deverá ser possível criar um poder militar a oeste dos Urais, mesmo que tenhamos de travar uma guerra durante cem anos para atingir esse objetivo. Todos os sucessores do Führer devem saber: a segurança do Reich só existe se não existirem forças militares estrangeiras a oeste dos Urais; é a Alemanha que assume a proteção desta zona contra todos os perigos possíveis. O nosso princípio inabalável deve ser e permanecer:

 

Nunca devemos permitir que ninguém, além dos alemães, possa andar armado!

 

Isto é especialmente importante; mesmo quando parece mais fácil, a princípio, obter o apoio armado de nações estrangeiras subjugadas, é errado fazê-lo. Isso revelar-se-á, algum dia, absoluta e inevitavelmente, em nosso desfavor. Só o alemão pode andar armado, não o eslavo, nem o checo, nem o cossaco, nem o ucraniano!

Em caso algum devemos aplicar uma política vacilante como a que foi adotada na Alsácia antes de 1918. O que distingue o inglês é a sua constante e consistente adesão a uma linha e a um objetivo. Nesse aspeto, devemos aprender absolutamente com ele. Por isso, nunca devemos basear as nossas ações em personalidades contemporâneas individuais; aqui, mais uma vez, a conduta dos britânicos na Índia em relação aos príncipes indianos, etc., deve servir de exemplo: É sempre o soldado que tem de consolidar o regime!

 

Temos de criar um Jardim do Éden nos territórios orientais recém-conquistados; são de vital importância para nós; em comparação com eles, as colónias desempenham um papel totalmente subordinado.

 

Mesmo que dividamos determinadas áreas de uma só vez, procederemos sempre no papel de protetores da lei e da população. Os termos necessários neste momento devem ser escolhidos de conformidade com este princípio: Não falaremos de novo território do Reich, mas da tarefa que se tornou necessária por causa da guerra.

 

[ . . . ] O Führer sublinha que toda a área do Báltico deve tornar-se território do Reich.

Da mesma forma, a Crimeia, incluindo um hinterland considerável (a área a norte da Crimeia), deve tornar-se território do Reich; o hinterland deve ser o maior possível.

[. . .] O Führer sublinha ainda que a colónia do Volga terá também de se tornar território do Reich, assim como o distrito em redor de Baku; este último terá de se tornar uma concessão alemã (colónia militar).

[…] A anexação da Finlândia como Estado federado deve ser preparada com muita cautela. A área em redor de Leninegrado é desejada pelos finlandeses; o Führer mandará arrasar Leninegrado para a entregar aos finlandeses.

[. . . ] O Reichsmarschall, contudo, enfatizou os critérios mais importantes que, por ora, deveriam ser exclusivamente decisivos para nós: garantir o abastecimento de alimentos e, na medida do necessário, da economia; garantir a segurança das estradas, etc.

[ . . . ] O Reichsleiter Rosenberg abordou, de seguida, a questão de garantir a segurança da administração.

[ . . . ] O Marechal de Campo Keitel enfatizou que os próprios habitantes deveriam ser responsabilizados pelos seus assuntos, pois era, obviamente, impossível colocar uma sentinela em frente de cada barracão ou estação ferroviária. Os habitantes precisavam de compreender que qualquer pessoa que não cumprisse os seus deveres adequadamente seria fuzilada e que seria responsabilizada por cada delito.

[…] Após o intervalo, o Führer enfatizou que precisávamos de compreender que a Europa de hoje não passava de um termo geográfico; na realidade, a Ásia estendia-se até às nossas fronteiras.

 

 

No blog de 27 de setembro de 2017, “Os ovos da serpente”, além de explicar esse conceito, recordei outros elementos, como o facto de  em 1939 os nazis contarem com mais de duzentos mil seguidores e simpatizantes nos EUA, que a revista Time escolheu Hitler para figurar na sua capa, como “homem do ano 1938” entendendo que devia ser o candidato ao Prémio Nobel da Paz, e que entre os seus admiradores se encontravam o magnate automobilístico Henry Ford e o aviador Charles Lindbergh.

 E que na Grã-Bretanha, a abdicação em 1936 do rei Eduardo VIII, Duque de Windsor, ficara certamente mais a dever-se às suas simpatias para com Hitler e o regime nazi do que com o facto de pretender casar-se com uma divorciada americana. Eram notórias as simpatias da classe alta e dos aristocratas britânicos para com o regime nazi, o que talvez tenha levado Hitler a cometer o erro estratégico de acreditar que a implantação do seu regime na Grã-Bretanha seria relativamente fácil, não se preocupando muito em dificultar a retirada do exército britânico de Dunquerque.

E que, na destruição e na confusão que se seguiu após o fim da II Guerra, a necessidade de se manter a funcionar um mínimo de administração pública nos países derrotados, e até a dificuldade de separar nazis de não nazis fez com que, intencionalmente ou não, muitos deles passassem despercebidos, pelo que apenas 6650 ex-nazis foram condenados, o que só por si era uma pequena parte do total dos membros do partido.

 Mais: Um recente estudo denominado “Projeto Rosemburg” apresentado publicamente por Heiko Maas, atual ministro da Justiça alemão, veio confirmar que em 1957, 77% dos funcionários com cargos de responsabilidade no Ministério da Justiça alemão (ou seja, três em cada quatro) eram antigos membros do partido nazi. O que não deixa de ser até curioso, porquanto essa percentagem em 1957 era mais alta do que durante o Terceiro Reich (http://www.dn.pt/mundo/interior/sistema-de-justica-alemao-do-pos-guerra-estava-dominado-por-ex-nazis-5434041.html).

Aliás, ainda hoje, passados mais de 75 anos da Segunda Guerra, a Alemanha continua a pagar pensões mensais aos colaboradores do regime nazi em países como o Reino Unido e a Bélgica, conforme um decreto de Adolf Hitler que estipulava a garantia de cidadania germânica aos estrangeiros que tivessem jurado “fidelidade, lealdade e obediência” ao Führer.

E a Suécia, Noruega, Finlândia e Dinamarca, mesmo depois da derrota do nazismo, continuaram a praticar a eugenia durante várias décadas. Entre 1935 e 1976, 63.000 suecas, 57.000 finlandesas, 40.000 norueguesas e 6.000 dinamarquesas foram esterilizadas, primeiro em nome da preservação da “pureza nórdica” face aos ciganos tatera, e mais tarde em obediência a critérios económicos do trabalhismo.

 

Recentemente, o esperado/enaltecido e não seguido relatório Draghi destacou os elevados custos energéticos como uma das principais razões para a perda de competitividade da UE. Em comparação com as suas congéneres americanas, os preços da energia continuam "2 a 3 vezes mais elevados" para a eletricidade e "4 a 5 vezes mais elevados" para o gás natural.

Como resultado, grandes partes da Europa Ocidental foram empurradas para a recessão e até para uma desindustrialização. Dir-se-á por exemplo que a Alemanha, tal como outros países, estava a lutar contra desafios preexistentes, em parte enraizados na arquitetura estrutural da UE e em parte autoimpostos como o investimento insuficiente em infraestruturas, a excessiva dependência dos setores transformadores tradicionais em detrimento das indústrias de alta tecnologia e uma estratégia de transição energética falhada. É, no entanto, evidente que a subida dos preços da energia se tornou o principal fator que prejudica a competitividade das empresas alemãs, levando muitas a transferir a produção para o exterior.

 

Contudo, o que Draghi não referiu é que tal foi uma consequência direta da decisão política da UE, após a invasão da Ucrânia pela Rússia, de se desvincular do gás russo, que antes da guerra representava quase metade da procura do bloco, e de recorrer ao gás natural liquefeito (GNL) muito mais caro do Qatar e, especialmente, dos Estados Unidos.

 

 

Notas:

(1) Fonte da tradução para inglês: Unsigned Memorandum (16 de julho de 1941), in United States Department of State, Documents on German Foreign Policy, 1918-1945: From the Archives of the German Foreign Ministry. Washington, DC: United States Government Printing Office, 1964. Série D (1937-1945), The War Years, Volume 13: 23 de junho a 11 de dezembro de 1941. Documento Número 114 (Nuremberg Document 221-L), pp. 149-56.

Fonte do texto original em alemão: Aktenvermerk vom 16. Juli 1941, no Der Prozess gegen die Hauptkriegsverbrecher vor dem Internationalen Militärgerichtshof. Nuremberga, 14 de novembro de 1945 – 1 de outubro de 1946. Volume XXXVIII, Amtlicher Text – Deutsche Ausgabe, Urkunden undanderes Beweismaterial. Nuremberga 1949. Reimpressão: Munique, Delphin Verlag, 1989. Documento 221-L, pp. 86-94.

 

(555) Senhores da guerra

Tempo estimado de leitura: 4 minutos.

 

Somos uma cultura definida pela guerra. Gostaria que antes nos pudéssemos diferenciar por outras coisas, Kathryn Bigelow.

 

Em 243 anos, de 1776 a 2019, os Estados Unidos realizaram 392 intervenções militares, Toft e Kushi.

 

E o ritmo dessas intervenções tem vindo a acelerar ao longo do tempo.

 

E os conflitos atuais não são acidentes geopolíticos, mas o resultado direto de uma longa história em que Washington procurou impor a sua vontade pela força.

 

 

 

Embora nos custe a aceitar, é muito bem possível que o “instinto bélico” tenha feito sempre parte dos seres humanos, isto se não quisermos recuar um pouco mais até ao ser vivo primordial, aquela celulazinha que para se alimentar e na ausência de melhor comia outras celulazinhas, parecidas ou não.

Quando elas se juntaram em organismos e depois em vizinhos similares, rapidamente se transformaram em bandos que se defendiam e atacavam, escolhendo por vários processos os que melhores resultados alcançassem. Foram assim surgindo os “senhores da guerra”.

Os senhores da guerra existiram ao longo de grande parte da história, embora numa variedade de diferentes capacidades dentro da estrutura política, económica e social dos estados ou territórios não governados.

Segundo a definição abrangente do Merriam Webster Unabridged Dictionary (2000): "1: um líder militar supremo; 2: um comandante militar que exerce poder civil tomado ou mantido pela força, geralmente puramente por interesse próprio e geralmente sobre uma região limitada, com ou sem reconhecimento de um governo central, por vezes tendo controlo efetivo sobre o governo ou administração central e, por vezes, obtendo reconhecimento de facto ou de direito de potências estrangeiras."

Com o aparecimento e desenvolvimento das Nações e dos Estados e dos Impérios, estas caraterísticas bélicas foram sendo internalizadas e assumidas.

Para os interessados nesse processo, aqui deixo um PDF de Chales Tilly que certamente acrescentará mais sobre o assunto: War Making and State Making as Organized Crime.

Longe vão os tempos em que Alguém preconizava que perante uma bofetada se deveria mostrar a outra face …

 

 

Monica Duffy Toft e Sidita Kushi, professores americanos em Ciência Política, vão em 2023,  com base no mais abrangente conjunto de dados existente, do Projeto de Intervenção Militar (MIP), publicar o livro Dying by the Sword, The Militarization of US Foreign Policy, onde entre outros comprovam que os Estados Unidos são o Estado mais intervencionista da história moderna, rivalizado apenas pelo Império Britânico: em 243 anos, de 1776 a 2019, os Estados Unidos realizaram 392 intervenções militares.

 

Além disso, verificaram também que o ritmo dessa intervenção tem vindo a acelerar ao longo do tempo. Entre 1776 e 1945, Washington interveio aproximadamente uma a uma vez e meia por ano. Durante a Guerra Fria, este número subiu para quase 2,5 intervenções anuais. Após a Guerra Fria, aumentou para 4,6 por ano e, desde 2001, tem-se mantido bastante elevado, com 3,6 intervenções anuais.

A exceção foi o ano de 1974, último ano em que os Estados Unidos não fizeram sequer uma nova intervenção militar. Antes disso, a única outra pausa verificada foi em 1952. Daí Toft e Kushi poderem concluir que a guerra constante tornou-se o padrão americano. O que aliás não se afasta muito da perceção dos norte-americanos: recentemente, a realizadora Kathryn Bigelow (The Hurt Locker, Zero Dark Thirty, A House of Dynamite) expressou numa entrevista que “Nós somos uma cultura definida pela guerra. Gostaria que antes nos pudéssemos diferenciar por outras coisas”.

 

Um dos factos estatísticos mais interessantes revelados por Toft e Kushi é que os principais adversários dos Estados Unidos de hoje são os próprios países em que o país interveio com mais frequência ao longo da sua história. Os sete principais são: China, Rússia, México, Coreia do Norte, Cuba, Irão e Nicarágua.

O que emerge é um quadro preocupante: os conflitos atuais não são acidentes geopolíticos, mas o resultado direto de uma longa história em que Washington procurou impor a sua vontade pela força.

Por outras palavras, os inimigos mais duradouros dos Estados Unidos são, em grande medida, aqueles que ajudaram a criar. E, crucialmente, as intervenções militares, a interferência, as sanções económicas e as constantes ameaças dos EUA nestes países, longe de construir estabilidade, deixaram antes legados de ressentimento, desconfiança e resistência. Não só enraizaram ciclos de hostilidade, como quase certamente contribuíram para a sua falta de democracia, liberalismo e prosperidade – os regimes autoritários que Washington agora demoniza são, em grande parte, o produto das suas próprias agressões.

Quando as pessoas vivem sob o cerco de uma grande potência, quando as suas sociedades são marcadas pela violência, pela pobreza e pela erosão da educação e das oportunidades, não se tornam mais democráticas ou liberais. Em vez disso, o medo, as dificuldades e a insegurança criam um terreno fértil para o governo autoritário – e as agressões de Washington têm contribuído repetidamente para isso mesmo. Em termos mais claros, os Estados Unidos fabricam os seus próprios inimigos e depois condenam-nos pelas mesmas condições que ajudaram a criar.

 

Mas talvez a descoberta mais chocante do livro venha da comparação dos níveis de hostilidade dos EUA com os dos seus inimigos. Durante a Guerra Fria, os níveis de hostilidade eram aproximadamente simétricos. Mas em todos os períodos anteriores e posteriores, os Estados Unidos demonstraram níveis de hostilidade mais elevados do que os dos seus adversários – muitas vezes significativamente mais elevados.

Isto sugere fortemente que a maioria das guerras americanas ao longo da sua história não foram guerras defensivas, mas guerras imperiais por opção, nas quais Washington foi o principal impulsionador. Além disso, desde 1776 até ao fim da Guerra Fria, mais de 75% de todas as intervenções americanas foram unilaterais. Desde 1990, esta percentagem desceu para 57,7%. O que significa que Washington nunca se preocupou muito com a opinião global ou com o direito internacional.

 

Este padrão de intervenção mostra que as guerras dos Estados Unidos raramente foram guerras de sobrevivência. Foram, na sua esmagadora maioria, guerras de escolha, impulsionadas por ambições expansionistas, comerciais e imperiais.

 

Ou não fosse um Império!!!

(554) As barbáries subjacentes das civilizações

Tempo estimado de leitura: 4 minutos.

 

Todo o choque de civilizações é na realidade o choque entre as barbáries que lhes estão subjacentes, Walter Benjamin.

 

Toda a nossa vida assenta em mundos subterrâneos, por vezes muito escuros, que necessitam ser revolvidos.

 

Não permitiremos que os indivíduos que apoiam o terrorismo vivam confortavelmente. Enfrentarão todas as consequências das suas ações, Ben-Gvir.

 

Nunca aconteceu, o secretismo daquilo que o poder faz sem nunca o reconhecer.

 

 

 

 

 

 

É Freud que nos seus estudos sobre os sonhos os vai relacionar intimamente com as nossas regiões interiores que precisavam de ser agitadas e perturbadas. Mas, se virmos bem, não serão apenas os sonhos: toda a nossa vida quotidiana, os nossos costumes, assentam em mundos subterrâneos, por vezes muito escuros, que necessitam ser revolvidos.

Sabemos que pertencer a uma sociedade trás consigo momentos em que nos é ordenado que aceitemos livremente (obviamente fazendo a ‘nossa’ escolha), aquilo que de outra maneira nos é imposto.

E que para se poder viver numa sociedade temos de seguir um certo número de regras que nos aparecem como costumes. Os costumes são um conjunto complexo e intrincado de regras informais que nos permitem saber lidar com as normas explícitas da sociedade em que vivemos, para que as saibamos aplicar e aceitar, mesmo quando essa aceitação implique um jogo de desrespeito mutuamente consentido.

São usos e costumes as nossas ideias sobre o mal e o bem, sobre o que é agradável e desagradável, o que é divertido e sério, o que é belo e feio, bem como o sentido de honra, os modos à mesa, o modo de falar, o sotaque, o vestuário, o cheiro. Tudo isto são ideias da classe média em que estamos inseridos e que nos definem como seres sociais, muitas vezes contrastando com a perceção que temos de nós próprios.

Mas os usos e costumes não se restringem só a esta parte leve e séria acima exposta. Há também aquela parte subterrânea pesada e obscena, extremamente difícil de transformar, que constitui o inconsciente dos costumes. São casos recorrentes como, por exemplo, os da pedofilia na Igreja Católica (não só), os das praxes militares e os das torturas infligidas.

 

Em “Mover as regiões infernais” socorri-me de uma citação de Walter Benjamin em que ele diz que “todo o choque de civilizações é na realidade o choque entre as barbáries que lhes estão subjacentes”, para me referir ao então acontecido na prisão de Abu Ghraib, Iraque, onde soldados americanos tiraram fotografias torturando  e humilhando presos iraquianos.

Zizek vai, contudo, chamar-nos também a atenção para o facto de o choque entre as civilizações árabe e americana não ser um choque entre a barbárie e o respeito pela dignidade humana, mas antes “um choque entre a tortura brutal e anónima (como a de Saddam e outros, iminentemente física e escondida) e a tortura como espetáculo mediático no qual os corpos das vítimas servem de pano de fundo anónimo ao sorriso dos ‘rostos americanos inocentes’ dos próprios torcionários.”

Atente-se ainda num outro problema que aparece focado no filme A Few Good Men (Uma Questão de Honra) de Bob Reiner, com Jack Nicholson, Tom Cruise e Demi Moore. Fuzileiros americanos acusados de espancarem um seu camarada e de lhe provocarem a morte fazem-no a coberto de uma regra não-escrita (o Código Vermelho) que autoriza essa atuação quando um soldado tenha infringido as obrigações éticas dos Marines. Apesar de ilegal, esse código verbal é suposto servir para a coesão do grupo e é do total conhecimento e aprovação dos superiores.

Tal como com o Código Vermelho, também aqui a norma é o secretismo daquilo que o poder faz sem nunca o reconhecer. As torturas reveladas nas fotografias de Abu Ghraib embora não diretamente ordenadas caem nesta região da legitimação superior obscena sem a qual os soldados nunca se atreveriam a fazê-las. As tais “regiões infernais” a mover.

 

Mais sofisticadamente, provavelmente até por milenar inserção histórica, os representantes do Estado de Israel, através do seu Ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, começam logo abertamente por dizer o que irá acontecer. Assim, afirmou no mês passado que os ativistas da Flotilha Global Sumud deviam ser tratados como terroristas para "criar uma clara advertência " a futuros ativismos de outras flotilhas, declarando que "qualquer pessoa que opte por colaborar com o Hamas e apoiar o terrorismo encontrará uma resposta firme e inflexível de Israel".

"Não permitiremos que os indivíduos que apoiam o terrorismo vivam confortavelmente. Enfrentarão todas as consequências das suas ações".

 

 

Numa entrevista ao jornal sueco Aftonbladet, Greta Thunberg corroborou relatos anteriores de testemunhas oculares de que ela e os seus colegas ativistas da Flotilha Global Sumud foram sujeitos a abusos por parte das autoridades israelitas depois de terem sido sequestrados dos seus barcos em que transportavam ajuda humanitária para os palestinianos em Gaza.

 

Eis alguns excertos da entrevista:

 

Agarraram-me, atiraram-me para o chão e atiraram uma bandeira israelita por cima de mim.”

Arrastaram-me para o lado oposto onde os outros estavam sentados, e eu fiquei com a bandeira à minha volta o tempo todo. Bateram-me e pontapearam-me.”

Levaram-me com muita brutalidade para um canto para onde estava virada. ‘Um lugar especial para uma senhora especial’, disseram. E depois repetiam o tempo todo ‘Lilla hora’ (Puta vagabunda) e ‘Hora Greta’ (Puta Greta) em sueco que aprenderam.

 

No canto onde Greta estava sentada, a polícia colocou uma bandeira. "A bandeira foi colocada por forma a tocar-me. Quando tremulava e me tocava, gritavam 'Não toques na bandeira' e pontapeavam-me desse lado. Passado um bocado, as minhas mãos foram amarradas com braçadeiras, muito apertadas. Um bando de guardas fez fila para tirar selfies comigo enquanto eu estava sentada daquela maneira."

 

"Foram atirados para o chão e espancados. Mas eu só conseguia ver com o canto do olho, porque cada vez que levantava a cabeça do chão, era pontapeada pelo guarda que estava ao meu lado."

 

Greta foi então levada para um edifício para ser revistada e despida. "Os guardas não têm empatia nem humanidade e continuam a tirar selfies comigo. Há muita coisa de que não me lembro. Acontece tanta coisa ao mesmo tempo. Fica-se em choque. Sente-se dor, mas entra-se num estado de tentar manter a calma."

Lá fora, foi obrigada novamente a tirar a roupa, e conta. "Foi uma troça, um tratamento rude, e tudo foi filmado. Tudo o que fazem é extremamente violento."

"Estava tão quente, tipo 40 graus. Implorávamos o tempo todo: Podemos ter água? Podemos ter água? No final, gritávamos. Os guardas andavam em frente às grades o tempo todo, rindo e segurando as suas garrafas de água. Atiravam as garrafas com água para os contentores do lixo à nossa frente."

"Quando as pessoas desmaiavam, batíamos nas jaulas e pedíamos um médico. Depois vinham os guardas e diziam: 'Vamos matar-vos com gás'. Era comum dizerem isso."

 

"Isto mostra que, se Israel, com o mundo inteiro a assistir, pode tratar desta forma uma pessoa branca e conhecida, com passaporte sueco, imagine-se o que fazem aos palestinianos à porta fechada."

 

 

Após o rapto dos ativistas da flotilha pelas Forças de Defesa de Israel (IDF), Ben-Gvir filmou-se a provocá-los e a chamar-lhes "terroristas" e disse que "estava orgulhoso por tratarmos os 'ativistas da flotilha' como apoiantes do terrorismo".

As autoridades israelitas negaram as alegações de Greta, com o ministro dos Negócios Estrangeiros a afirmar numa declaração ao Telegraph: “Todos os seus direitos legais foram plenamente respeitados. Curiosamente, a própria Greta recusou-se a acelerar a sua deportação e insistiu em prolongar a sua permanência sob custódia. Também nunca apresentou qualquer queixa às autoridades israelitas sobre estas alegações ridículas e infundadas – porque simplesmente nunca aconteceram”.

 

Já no Apocalipse Now, a missão dada a Willard (Martin Sheen) para matar Kurtz (Marlon Brando), não fica registada. Conforme diz o general que transmite as instruções a Willard: “Nunca aconteceu”.

A ficção como verdade. A verdade como ficção.

 

(553) Os futuros da Europa

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

Cortar economicamente ao meio o continente europeu foi um ato de loucura suicida.

 

Estabelecer como horizonte social a ideia de que um homem pode realmente tornar-se mulher e uma mulher homem é afirmar algo biologicamente impossível, é negar a realidade do mundo, é afirmar o falso, E. Todd.

 

Uma descida à distopia, a um mundo negativo onde se misturam poder, fragmentação, hierarquia, violência, pobreza e perversidade

 

 

 

 

Em 1976, o antropólogo e historiador francês Emmanuel Todd previu em La chute finale: Essai sur la décomposition de la sphère Soviétique, a queda da União Soviética. Em 2001, com Après l’Empire : Essai sur la décomposition du système américain, previu o declínio (relativo) dos Estados Unidos.

Em 2024, no seu último livro, La Défaite de l’Occident, lamenta a condição em que o ocidente se colocou devido à incapacidade para distinguir os factos dos desejos. Basicamente assenta essa conclusão naquilo que declara ter vindo a infestar o pensamento ocidental: o niilismo, a falta de valores e a falta de aceitação da realidade.

 

É para Todd clara essa incapacidade assim que a Europa deixou de se ver integrada num espaço natural geográfico do qual a Rússia também fizesse parte (do que aliás sempre fez parte), autoamputando-se da possibilidade de ser considerada como polo mundial.

E sem querer ser moralista, vai atribuir isso à “fixação das classes médias ocidentais em questões de ultraminoritários […] como a ideologia trans […] o que levanta uma questão sociológica e histórica.”  Embora os indivíduos trans devam ser protegidos, “estabelecer como horizonte social a ideia de que um homem pode realmente tornar-se mulher e uma mulher homem é afirmar algo biologicamente impossível, é negar a realidade do mundo, é afirmar o falso”.

É o mesmo que utilizar como “uma das bandeiras deste niilismo que define agora o Ocidente, este impulso para destruir não só as coisas e as pessoas, mas a realidade” o que o Unabomber  proclamava no seu manifesto:   

 

Devemos estar preparados para defender a ideia de que, em princípio, todos devem ter acesso a cuidados médicos de mudança de sexo, independentemente da idade, identidade de género, ambiente social ou antecedentes psiquiátricos.”

 

 

A pedido da editora eslovena, Todd escreveu agora um novo prefácio para La Défaite de l’Occident, que acabou de publicar debaixo do título “The dislocation of the West: what threatens us”, e que aqui reproduzo/traduzo parcialmente:

 

Menos de dois anos após a publicação francesa de La Défaite de l’Occident, em janeiro de 2024, as principais previsões do livro concretizaram-se. A Rússia resistiu à tempestade militar e economicamente. A indústria militar americana está exausta. As economias e sociedades europeias estão à beira da implosão. O exército ucraniano ainda não entrou em colapso, mas o estágio de desagregação do Ocidente já foi atingido.

 

Sempre fui hostil às políticas russofóbicas dos Estados Unidos e da Europa, mas, como ocidental comprometido com a democracia liberal, francês formado em investigação em Inglaterra, filho de uma mãe refugiada nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, estou devastado pelas consequências para nós, ocidentais, da guerra travada sem inteligência contra a Rússia.

 

Estamos apenas no início da catástrofe. Aproxima-se um ponto de viragem, para além do qual se desenrolarão as consequências finais da derrota.

Temo agora que os nossos meios de comunicação social exacerbem a nossa cegueira por serem incapazes de imaginar o renovado prestígio da Rússia no resto do mundo, que tem sido explorada economicamente e tratada com arrogância pelo Ocidente durante séculos. Os russos ousaram. Desafiaram o Império e venceram.

 

A ironia da história é que os russos, um povo europeu e branco que fala uma língua eslava, tornaram-se no escudo militar do resto do mundo porque o Ocidente se recusou a integrá-los após a queda do comunismo.

 

Posso esboçar aqui um modelo da desarticulação do Ocidente, apesar das incoerências das políticas de Donald Trump, o presidente americano derrotado. Estas incoerências não resultam, creio, de uma personalidade instável e indubitavelmente perversa, mas de um dilema insolúvel para os Estados Unidos. Por um lado, os seus líderes, tanto no Pentágono como na Casa Branca, sabem que a guerra está perdida e que a Ucrânia terá de ser abandonada. O bom senso leva-os, portanto, a querer sair da guerra. Mas, por outro lado, o mesmo bom senso fá-los perceber que a retirada da Ucrânia terá consequências dramáticas para o Império que as do Vietname, do Iraque ou do Afeganistão não tiveram. Esta é, aliás, a primeira derrota estratégica americana à escala global, num contexto de desindustrialização maciça nos Estados Unidos e de difícil reindustrialização.

A desdolarização da economia global começou. Trump e os seus conselheiros não podem aceitar isto porque significaria o fim do Império. No entanto, uma era pós-imperial deveria ser o objetivo do projeto MAGA (Make America Great Again), que procura o regresso ao Estado-nação americano. Mas para uma América cuja capacidade produtiva em bens reais é hoje muito baixa … é impossível abdicar de viver a crédito, como acontece com a produção de dólares. Tal retirada imperial-monetária significaria uma queda acentuada do seu nível de vida, incluindo para os eleitores populares de Trump. O primeiro orçamento do segundo mandato de Trump, o "One Big Beautiful Bill Act", permanece, portanto, imperial, apesar das proteções tarifárias que personificam o projeto ou sonho protecionista. O OBBBA aumenta as despesas militares e o défice. Um défice orçamental nos Estados Unidos significa inevitavelmente produção de dólares e défice comercial.

A dinâmica imperial, ou melhor, a inércia imperial, continua a minar o sonho de um regresso ao Estado-nação produtivo.

 

Na Europa, a derrota militar [na Ucrânia] continua a ser mal compreendida pelos líderes. Não dirigiram as operações. Foi o Pentágono que desenvolveu os planos para a contraofensiva ucraniana no Verão de 2023 (durante o qual escrevi "A Derrota do Ocidente"). Os militares americanos, embora tivessem o seu representante ucraniano a combater na guerra, sabiam que tinham sido derrotados pela defesa russa – porque não conseguiam produzir armas suficientes e porque os militares russos foram mais inteligentes do que eles. Os líderes europeus apenas forneceram sistemas de armas, e não os mais importantes.

Desconhecendo a extensão da derrota militar, sabem, no entanto, que as suas próprias economias foram paralisadas pela política de sanções, especialmente pela interrupção do fornecimento de energia russa barata. Cortar o continente europeu ao meio economicamente foi um ato de loucura suicida. A economia alemã está estagnada. A pobreza e a desigualdade estão a aumentar em todo o Ocidente. O Reino Unido está à beira do colapso. A França não está muito atrás. As sociedades e os sistemas políticos estão paralisados.

Uma dinâmica económica e social negativa já existia antes da guerra e pressionava o Ocidente. Era visível, em diferentes graus, em toda a Europa Ocidental. O comércio livre está a minar a base industrial. A imigração está a desenvolver uma síndrome de identidade, particularmente entre as classes trabalhadoras, privadas de empregos seguros e bem remunerados.

 

Mais profundamente, a dinâmica negativa da fragmentação é cultural: o ensino superior em massa cria sociedades estratificadas nas quais os altamente instruídos – 20%, 30%, 40% da população – começam a viver entre si, a considerar-se superiores, a desprezar as classes trabalhadoras e a rejeitar o trabalho manual e a indústria. A educação primária para todos (alfabetização universal) alimentou a democracia, criando uma sociedade homogénea com um subconsciente igualitário. O ensino superior deu origem a oligarquias e, por vezes, a plutocracias, sociedades estratificadas invadidas por um subconsciente desigual. O paradoxo final: o desenvolvimento do ensino superior acabou por produzir um declínio nos padrões intelectuais destas oligarquias ou plutocracias!

 

A guerra elevou as tensões europeias a um nível ainda mais elevado. Está a empobrecer o continente. Mas, acima de tudo, como um grande fracasso estratégico, está a deslegitimar líderes incapazes de conduzir os seus países à vitória. O desenvolvimento dos movimentos populares conservadores (geralmente designados pelas elites jornalísticas por "populistas", "extrema-direita" ou "nacionalistas") está a acelerar. Reform UK no Reino Unido, AfD na Alemanha, Rassemblement National em França.... Ironicamente, as sanções económicas que a NATO esperava que provocassem uma "mudança de regime" na Rússia estão prestes a desencadear uma cascata de "mudanças de regime" na Europa Ocidental.

Uma das características interessantes dos Estados Unidos de hoje é que os seus líderes têm cada vez mais dificuldade em distinguir entre questões internas e externas, apesar da tentativa do MAGA de impedir a imigração do Sul com um muro. O exército dispara sobre barcos que saem da Venezuela, bombardeia o Irão, entra no centro de cidades democratas nos Estados Unidos e patrocina a força aérea israelita para um ataque ao Qatar, onde existe uma enorme base americana. Qualquer leitor de ficção científica reconhecerá nesta lista perturbadora o início de uma descida à distopia, isto é, um mundo negativo onde se misturam poder, fragmentação, hierarquia, violência, pobreza e perversidade.

 

Portanto, continuemos a ser nós próprios, fora da América. Mantenhamos a nossa perceção do interior e do exterior, o nosso sentido de proporção, o nosso contacto com a realidade, a nossa conceção do que é certo e belo. Não nos deixemos arrastar para uma corrida precipitada para a guerra pelos nossos próprios líderes europeus, esses indivíduos privilegiados perdidos na história, desesperados por terem sido derrotados, aterrorizados com a ideia de um dia serem julgados pelos seus povos. E, sobretudo, acima de tudo, continuemos a refletir sobre o sentido das coisas.

 

Paris, 28 de setembro de 2025.

(552) Como conservar o poder …

Tempo estimado de leitura: 10 minutos.

 

Para se defender, qualquer Estado se vê obrigado a legislar/atuar contra quem o pretenda desapossar.

 

O que é acção contrarrevolucionária segundo o Artigo 58 de 1927 da URSS.

 

O que prevê o Código Penal de 1997 da China para qualquer pessoa que utilize boatos, calúnias ou outros meios para encorajar a subversão do poder político do Estado ou para derrubar o sistema socialista.

 

Os casos extremos da Alemanha nazi que exatamente por isso se tornam paradigmáticos na medida em que nos indicam a par e passo o caminho a percorrer.

 

A 25 de setembro de 2025, o Presidente Donald J. Trump assinou o importante NSPM-7, relativo ao “Combate ao Terrorismo Doméstico e à Violência”.

 

 

 

 

 

‘Conservador’ é todo aquele que gosta de conservar aquilo que foi conseguindo ao longo da vida, definição que em si faz de quase todos nós conservadores. Nada de mal. Só que tudo isso começa a ser problemático quando se passa do individual para o campo do Estado na medida em que para se defender (o Estado é sempre resultado de um poder conquistado, legalmente ou não) se vê obrigado a legislar/atuar contra quem o pretenda desapossar.

Mesmo os Estados considerados como os mais democráticos se defendem, por exemplo, contra a publicação de segredos do governo, como o Defense Secrets Act de 1911 dos EUA, ou pela criminalização de atos de interferência nas relações exteriores e do comércio, a punição da espionagem  e outras leis criminais, como o Espionage Act de 1917, ou ainda o Official Secrets Act 1889 do Parlamento do UK. Escusado dizer que estas peças legislativas têm sempre vindo a ser atualizadas.

Outros regimes, digamos que ainda não tão estabilizados ou provenientes de alterações político-sociais então recentes, legislam no mesmo sentido para manterem o poder, como é o caso do Artigo 58 de 1927 da URSS, visando suspender as atividades contrarrevolucionárias.

O seu 58-1 começa pela definição:

 “Uma acção contrarrevolucionária é qualquer acção que vise derrubar, minar ou enfraquecer o poder dos sovietes de operários e camponeses… e dos governos da URSS e das repúblicas soviéticas e autónomas, ou minar ou enfraquecer a segurança externa da URSS e as principais conquistas económicas, políticas e nacionais da revolução proletária.”

Nomeia depois alguns exemplos de crimes e penas a aplicar:

58-2. Insurreição armada ou intervenção com o objetivo de tomar o poder: pode ir até à morte com confisco, incluindo o reconhecimento formal como "inimigo dos trabalhadores".

58-9. Danos em transportes, comunicações, abastecimento de água, armazéns e outros edifícios ou bens estatais e comunais com fins contrarrevolucionários: o mesmo que 58-2.

58-10. Propaganda e agitação antissoviética e contrarrevolucionária: pelo menos 6 meses de prisão. Em condições de agitação ou de guerra: o mesmo que 58-2.

 

Ou ainda o caso do Artigo 105.º, Parágrafo 2, do Código Penal de 1997 da República Popular da China:

 

"Qualquer pessoa que utilize boatos, calúnias ou outros meios para encorajar a subversão do poder político do Estado ou para derrubar o sistema socialista será condenada a uma pena de prisão até cinco anos. No entanto, os dirigentes e qualquer pessoa cujo crime seja monstruoso serão condenados a uma pena de prisão nunca inferior a cinco anos."

 

E há depois aqueles casos extremos (Alemanha nazi) que exatamente por isso se tornam paradigmáticos na medida em que nos indicam a par e passo o caminho a percorrer:

 

Após ter sido nomeado Chanceler (Primeiro Ministro) a 30 de janeiro de 1933, Hitler enfrentava grandes dificuldades para governar. O Partido Nazi detinha apenas um terço de todos os lugares no Reichstag (Câmara Baixa do Parlamento), carecendo, por isso, de uma maioria. Assim, os nazis procuraram por todas as formas obter esse apoio que lhe faltava, acabando   por serem convocadas novas eleições para 5 de março de 1933.

 

Entretanto, Hermann Göring fora nomeado Ministro do Interior e procurou formas de aumentar o apoio nazi através de negociações com industriais, que apoiaram os nazis fornecendo-lhes 3 milhões de Reichsmarks. Contudo, o principal esforço de Göring era o dirigido ao ataque à polícia estadual alemã. Rapidamente começou a despedir polícias seniores substituindo-os por apoiantes nazis. Paralelamente, infiltrou a força policial com 50.000 membros da SA (‘camisas castanhas’) para trabalharem como Polícia Auxiliar (mais tarde conhecida por Gestapo, polícia secreta).

 

A 27 de fevereiro de 1933 dá-se o incêndio do Reichstag, pretexto perfeito para os nazis lançarem um ataque contra os seus maiores rivais, os comunistas e os outros partidos de esquerda. Com a publicação do decreto subsequente, "Decreto do Presidente do Reich para a Proteção do Povo e do Estado" (também conhecido como Decreto de Emergência), os comunistas e os socialistas são impedidos de participarem na campanha eleitoral, procedendo-se às detenções em massa de líderes desses partidos e ao encerramento de jornais partidários.

Cerca de 10.000 comunistas e socialistas foram presos em março e abril. Em junho, o número de pessoas sob ‘custódia protetora’ – a maioria trabalhadores – tinha duplicado. Um bom número foi vítima de denúncias por parte de vizinhos ou colegas de trabalho.

 

A 21 de março de 1933, a Lei das Práticas Maliciosas (Verordnung zur Abwehr heimtückischer Diskreditierung der nationalen Regierung) foi aprovada, com o intuito claro de erradicar "opressores" e "inimigos" do Estado alemão.

Segundo esta nova legislação, o Estado nazi tornava ilegal falar mal ou criticar o regime e os seus dirigentes. Estas duas orientações principais eram contempladas debaixo da Prisão Protetiva e da Prisão Preventiva.

 A Prisão Preventiva visava os indesejáveis ​​na sociedade, como, por exemplo, os indigentes, os homossexuais e os judeus. Aqueles que tivessem o azar de se enquadrar nesta categoria poderiam ser presos mesmo que não tivessem cometido um crime. Note-se que a homossexualidade era já considerada crime no regime anterior (de Weimar).

A prisão preventiva, no entanto, visava especialmente os opositores políticos do regime, em particular os de esquerda, como os comunistas e os sociais-democratas. O Estado deixou claro que aqueles que não cumprissem a ideologia e a política nazis poderiam ser presos para a "proteção do Estado".

 

A 22 de março de 1933, o campo de concentração de Dachau foi oficialmente aberto.

 

A intenção de todas estas coincidências do primeiro trimestre de 1933 era a de eliminar outros partidos políticos da política alemã e erradicar a sua presença de forma permanente. Atente-se, por exemplo, em alguns desenvolvimentos futuros próximos:

 

A 15 de setembro de 1935, a quando do comício anual do partido e numa sessão especial do Parlamento, são introduzidas as Leis de Nuremberga, que não são mais que duas leis com vista a eliminar qualquer presença judaica. Em primeiro lugar, foi aprovada a Lei para a Proteção do Sangue e da Honra Alemã, que proibia o casamento e as relações extraconjugais entre judeus e alemães. Em segundo lugar, foi aprovada a Lei da Cidadania do Reich, que retirava a cidadania aos judeus.

Um decreto suplementar emitido a 14 de novembro de 1935 definiu quem era legalmente considerado judeu e pôs em vigor a Lei da Cidadania do Reich. A 26 de novembro, novos regulamentos alargaram as medidas aos ciganos e aos afro-alemães, classificando-os, juntamente com os judeus, como "inimigos do Estado racial".

 

De referir ainda, por nos transportar para tempos em que vivemos, o exemplo de uma circular do Ministro do Interior do Reich e da Prússia, emitida a 14 de dezembro de 1937:

 

"...são considerados como antissociais as pessoas que demonstrem, através de comportamentos em relação à comunidade, mesmo que não sejam criminosos em si, que não se adaptarão à comunidade.

"Consideram-se como exemplos antissociais:

"As pessoas que, através de infrações menores, mas repetidas, à lei, demonstram que não se adaptarão ao estado socialista, por exemplo, mendigos, vagabundos, prostitutas, alcoólicos com doenças contagiosas, especialmente doenças transmissíveis, que se esquivam às medidas tomadas pelas autoridades de saúde pública."

 

 

 

Contemporaneamente, os Estados das sociedades tecnologicamente mais avançadas, com as possibilidades de poderem vigiar quase que individualmente cada um dos seus cidadãos (e se hegemónicas, os cidadãos das outras sociedades), veem-se forçados pela sua própria rápida evolução a atualizarem constantemente os seus procedimentos de segurança para tentarem evitar o risco/certeza da perda de poder.

 

O exemplo mais recente é o fornecido pelo memorando de política nacional de segurança NSPM-7 (national security policy memorandum) assinado pelo Presidente Donald J. Trump a 25 de setembro de 2025, relativo ao “Combate ao Terrorismo Doméstico e à Violência”. Eis o que ele nos diz:

 

Na Secção 1, começa por fazer o ponto da situação relativamente aos “assassinatos hediondos e outros atos de violência política” que nos Estados Unidos têm vindo a aumentar drasticamente nos últimos anos. E explica:

Esta violência política não é uma série de incidentes isolados e não surge de forma orgânica. Em vez disso, é o culminar de campanhas sofisticadas e organizadas de intimidação, radicalização, ameaças e violência direcionadas, concebidas para silenciar o discurso da oposição, limitar a atividade política, alterar ou direcionar os resultados das políticas e impedir o funcionamento de uma sociedade democrática. É necessária uma nova estratégia de aplicação da lei que investigue todos os participantes nestas conspirações criminosas e terroristas — incluindo as estruturas organizadas, redes, entidades, organizações, fontes de financiamento e ações subjacentes por detrás das mesmas.

 

Estas campanhas começam geralmente por isolar e desumanizar alvos específicos para justificar assassinatos ou outras ações violentas contra eles. Fazem-no através de uma variedade de fóruns, incluindo fóruns de chat anónimos, reuniões presenciais, redes sociais e até instituições de ensino. Estas campanhas evoluem então para o doxing organizado, onde informações privadas ou de identificação dos seus alvos (como moradas residenciais, números de telefone ou outras informações pessoais) são expostas ao público com a intenção explícita de encorajar outros a assediá-los, intimidá-los ou agredi-los violentamente. Tal como no caso de vários agentes do ICE em Los Angeles serem doxados, o objetivo destas campanhas pode ser obstruir as operações do Governo Federal, bem como auxiliar e incentivar atividades criminosas que o Governo Federal esteja legalmente a prosseguir. Estas campanhas são coordenadas e perpetradas por intervenientes que desenvolveram uma estratégia abrangente para atingir objetivos políticos específicos através da radicalização e da intimidação violenta.

 

Existem motivações e indícios comuns recorrentes que unem este padrão de atividades violentas e terroristas sob a égide do autodenominado "antifascismo". Estes movimentos retratam princípios americanos fundamentais (por exemplo, apoio à aplicação da lei e ao controlo das fronteiras) como "fascistas" para justificar e encorajar atos de revolução violenta. Esta mentira "antifascista" tornou-se o grito de guerra utilizado pelos terroristas domésticos para travar um ataque violento contra as instituições democráticas, os direitos constitucionais e as liberdades americanas fundamentais. Os fios condutores comuns que animam esta conduta violenta incluem o antiamericanismo, o anticapitalismo e o anticristianismo; apoio à deposição do governo dos Estados Unidos; extremismo em relação à migração, raça e género; e hostilidade contra aqueles que defendem as visões americanas tradicionais sobre a família, a religião e a moralidade. Conforme descrito na Ordem de 22 de setembro de 2025 (Designando a Antifa como uma Organização Terrorista Doméstica), os grupos e entidades que perpetuam este extremismo criaram um movimento que abraça e eleva a violência para alcançar resultados políticos, incluindo a justificação de assassinatos adicionais. Por exemplo, o alegado assassino de Charlie Kirk marcou as balas usadas no assassinato com a retórica dita "antifascista".

 

Os Estados Unidos exigem uma estratégia nacional para investigar e desmantelar redes, entidades e organizações que fomentam a violência política, para que as autoridades policiais possam intervir em conspirações criminosas antes que resultem em atos políticos violentos. Através desta estratégia abrangente, as autoridades policiais irão desmantelar e erradicar redes, entidades e organizações que promovem a violência organizada, a intimidação violenta, as conspirações contra os direitos e outros esforços para perturbar o funcionamento de uma sociedade democrática.

 

Secção 2. Investigação de Organizações Terroristas Domésticas.

 (a) A Força-Tarefa Nacional Conjunta contra o Terrorismo e os seus gabinetes locais (coletivamente, “JTTFs”) coordenarão e supervisionarão uma estratégia nacional abrangente para investigar, processar e desmantelar entidades e indivíduos envolvidos em atos de violência política e intimidação, destinados a suprimir atividades políticas lícitas ou obstruir o Estado de direito. Esta estratégia incluirá as medidas investigativas e processuais estabelecidas nesta secção.

(b) As JTTF investigarão potenciais crimes federais relacionados com atos de recrutamento ou radicalização de pessoas com a finalidade de:

(i) violência política, terrorismo ou conspiração contra direitos; ou

(ii) privação violenta dos direitos de qualquer cidadão.

(c) As JTTFs irão também investigar:

(i) financiadores institucionais e individuais, e diretores e funcionários de organizações que sejam responsáveis, patrocinem ou de outra forma auxiliem e incitem os principais atores envolvidos na conduta criminosa descrita nas subsecções (a) e (b) da presente secção; e

(ii) organizações não governamentais e cidadãos americanos residentes no estrangeiro ou com laços estreitos com governos, agentes, cidadãos, fundações ou redes de influência estrangeiros envolvidos em violações da Lei de Registo de Agentes Estrangeiros (22 U.S.C. 611 e segs.) ou branqueamento de capitais através do financiamento, criação ou apoio a entidades que se envolvam em atividades que apoiem ou incentivem o terrorismo doméstico.

(d) As JTTF consultarão e coordenarão com os departamentos executivos e agências (agências), conforme necessário, para determinar se tais agências podem aplicar as autoridades existentes ou exercer as suas próprias autoridades, conforme apropriado, para apoiar as investigações das JTTF e os processos relevantes de violência política.

(e) As JTTF poderão, na medida do permitido por lei, solicitar assistência operacional e coordenar-se com parceiros responsáveis ​​pela aplicação da lei quando investigam terrorismo doméstico.

(f) A Força-Tarefa Conjunta Nacional contra o Terrorismo fornecerá atualizações regulares de progresso ao Presidente através do Assistente do Presidente e do Conselheiro de Segurança Interna.

(g) O Procurador-Geral encarregará o Departamento de Justiça de processar todos os crimes federais, na medida máxima permitida por lei, relacionados com as investigações descritas nas subsecções (a) a (c) da presente secção.

(h) O Procurador-Geral emitirá orientações específicas que garantam que as prioridades do terrorismo doméstico incluem atos terroristas com motivações políticas, tais como campanhas organizadas de doxing, ataques a pessoas, tumultos, pilhagens, invasões, agressões, destruição de propriedade, ameaças de violência e desordem civil. Estas orientações incluirão também a identificação de quaisquer comportamentos, padrões de factos, motivações recorrentes ou outros indícios comuns a organizações e entidades que coordenam estes atos, de forma a direcionar esforços para identificar e prevenir potenciais atividades violentas.

(i)O Secretário do Tesouro (Secretário), em coordenação com o Procurador-Geral, disponibilizará todos os recursos, na medida máxima permitida por lei, para identificar e desmantelar as redes financeiras que financiam o terrorismo interno e a violência política. O Secretário, atuando através do Gabinete de Inteligência Financeira e Terrorismo do Departamento do Tesouro, implementará ferramentas de investigação, examinará os fluxos financeiros e coordenará com as agências parceiras para rastrear os fluxos de financiamento ilícito. O Secretário orientará as instituições financeiras na elaboração de Relatórios de Atividades Suspeitas e na investigação de indícios de fluxos de financiamento ilícito, a fim de garantir que tais atividades são erradicadas na fonte e encaminhadas para medidas policiais, conforme apropriado.

(j) O Comissário dos Impostos (Comissário) tomará medidas para garantir que nenhuma entidade isenta de impostos está, direta ou indiretamente, a financiar a violência política ou o terrorismo doméstico. Além disso, quando aplicável, o Comissário assegurará que o IRS remeta tais organizações, bem como os seus funcionários e diretores, para o Departamento de Justiça para investigação e possível processo.

(k) Todas as agências federais de aplicação da lei com autoridade de investigação questionarão e interrogarão, dentro de todas as autoridades legais, os indivíduos envolvidos em violência política ou ilegalidade em relação à entidade ou indivíduo que organiza tais ações e qualquer patrocínio financeiro relacionado com essas ações, antes da adjudicação ou início de um acordo judicial. As investigações devem priorizar crimes como os seguintes: agressão a agentes ou funcionários federais ou envolvimento em conduta proibida pelo 18 U.S.C. 111; conspiração contra direitos, nos termos do 18 U.S.C. 241; conspiração para cometer um crime, nos termos do 18 U.S.C. 371; pedido para cometer um crime de violência, nos termos do artigo 18.º do Código dos Estados Unidos, Secção 373; branqueamento de capitais, nos termos do artigo 18.º do Código dos Estados Unidos, Secção 1956; financiamento de atos terroristas ou facilitação do terrorismo, nos termos do artigo 18.º do Código dos Estados Unidos, Secção 2339, Secção 2339A, Secção 2339B, Secção 2339C e Secção 2339D; crimes de incêndio, nos termos do artigo 18.º do Código dos Estados Unidos, Secção 844; violações da Lei das Organizações Corruptas e Influenciadas por Extorsão (18 do Código dos Estados Unidos, Secção 1961 e seguintes); e fraude grave contra os Estados Unidos, nos termos do artigo 18.º do Código dos Estados Unidos, Secção 1031.

(l) Todas as agências federais de aplicação da lei com autoridade de investigação devem adotar estratégias semelhantes às utilizadas para combater os crimes violentos e o crime organizado, a fim de desmantelar e desmantelar redes inteiras de atividade criminosa.

 

Secção 3. Designação do Departamento de Justiça. No decurso e em resultado das investigações orientadas pela secção 2 do presente memorando, o Procurador-Geral poderá recomendar que qualquer grupo ou entidade cujos membros estejam envolvidos em atividades que se enquadrem na definição de “terrorismo doméstico” em 18 U.S.C. 2331(5) mereça a designação como “organização terrorista doméstica”. O Procurador-Geral submeterá uma lista de tais grupos ou entidades ao Presidente, através do Assistente do Presidente e do Conselheiro de Segurança Interna.

 

Secção 4. Terrorismo Doméstico como Área de Prioridade Nacional. O Procurador-Geral e o Secretário de Segurança Interna designarão o terrorismo doméstico como área de prioridade nacional e desenvolverão programas de subsídios apropriados para alocar recursos para que os parceiros responsáveis ​​pela aplicação da lei detetem, previnam e protejam contra ameaças decorrentes dessa área.”

 

 

Cinco ias depois, a 30 de setembro de 2025, e perante 800 oficiais generais e almirantes americanos propositadamente reunidos na Base do Corpo de Fuzileiros Navais de Quantico, Virgínia, o Secretário da Defesa, Pete Hegseth, disse-lhes:

 

Estamos a preparar-nos todos os dias. Temos de estar preparados para a guerra, não para a defesa. Estamos a treinar guerreiros, não defensores. Lutamos em guerras para vencer, não para defender. A defesa é algo que se faz a todo o momento. É inerentemente reacionária e pode levar a um uso excessivo, ao excesso de alcance e à expansão da missão. A guerra é algo que se faz com moderação, nos nossos próprios termos e com objetivos claros. Lutamos para vencer. ... Bem, hoje é mais um Dia da Libertação, a libertação dos guerreiros americanos...Vocês matam pessoas e partem coisas como forma de vida. Não é politicamente correto e não pertence necessariamente sempre à sociedade educada.

 

Para finalizar essa mesma reunião, o Presidente Trump discursou durante algum tempo, para, entre outros, lhes comunicar o seguinte:

 

Só nas últimas décadas é que os políticos, de alguma forma, passaram a acreditar que a nossa função é policiar os confins do Quénia e da Somália, enquanto os Estados Unidos estão sob invasão interna. Estamos sob invasão interna, não diferente de um inimigo estrangeiro, mas mais difícil em muitos aspetos, porque não usam fardas. Pelo menos quando estão fardados, pode eliminá-los. Essas pessoas não têm fardas. Mas estamos sob invasão interna e estamos a impedi-lo muito rapidamente. Depois de gastarmos triliões de dólares a defender as fronteiras dos países estrangeiros, com a vossa ajuda, estamos a defender as fronteiras do nosso país a partir de agora.

 

 

Aguardemos os próximos desenvolvimentos.

(551) Histórias da carochinha …

Tempo estimado de leitura: 4 minutos.

 

Tudo agora parece uma guerra em que vale tudo. O que acontece é que parece que sempre tem sido assim, cá dentro e lá fora.

 

A história americana está repleta de exemplos de comportamentos presidenciais pouco sérios em relação à Constituição, Napolitano.

 

Deus voltou-se de costas e chorou, Zizek.

 

As máquinas mandam nas casas, nas fábricas, nos escritórios, nos seus escritórios, nas plantações agrícolas, nas minas e nas ruas das cidades, onde nós peões somos incómodos que perturbam o trânsito, Galeano.

 

 

 

Do futebol à política (não que sejam assim tão diferentes), temos vindo a assistir treinadores a utilizarem como incentivos para melhorar a atuação dos seus jogadores, expressões/conteúdos como  “Força, vamo-nos a eles, vamos matá-los!”, a comentadores desportivos a relatarem “Que grande tiro!”, “Um autêntico míssil”, “Fuzilou a baliza”, a epítetos altamente injuriosos  “!!!” dirigidos aos adversários/inimigos berrados pelas claques com seus filhos  ao lado, talvez com a piedosa intenção para que a educação seja convenientemente passada à geração seguinte e que assim mantenha aquelas caraterísticas rácicas que tão bem nos definem tentando deste modo compensarem um esquecimento ou engano da Criação, aos inocentes e cada vez mais repetidos separadores televisivos com o hino nacional a ser cantado pelos desportistas mais reconhecidos “Contra os canhões, marchar, marchar!” transformando um simples jogo num combate que inevitavelmente conduzirá à morte, aos desvarios estudados dos políticos que não se coibindo alto e bom som querem mandar para a prisão todos os adversários que não gostam numa imitação provinciana e desajeitada do amigo americano, esse sim que pelo menos é presidente e tem forças armadas.

Tudo isto e muito mais faz com que haja quem pense que atualmente se vive num mundo muito violento, sem regras, muito “polarizado”, em que as pessoas se agridem e insultam umas às outras, sem qualquer respeito umas pelas outras.

Tudo agora parece uma guerra em que vale tudo. Acontece que parece que sempre tem sido assim, cá dentro e lá fora.

 

Atente-se, por exemplo, no que nos diz o juiz americano do Supremo Tribunal de New Jersey, Andrew Napolitano:

 

Quando os monarcas britânicos se queriam ver livres de adversários inconvenientes, acusavam-nos frequentemente de crimes vagos, pois podiam definir o crime da forma que bem entendessem. São Tomás More, ex-Lorde Chanceler de Henrique VIII, foi executado pelo seu silêncio. O alvo do monarca recebia um julgamento rápido e, em seguida, frequentemente uma morte pública lenta e excruciante – para enviar uma mensagem.

Cientes dos impulsos tirânicos dos monarcas e familiarizados com a história britânica, e até mesmo pessoalmente conscientes de pessoas nas colónias acusadas de crimes em Londres – onde nunca tinham estado – e transportadas para lá para serem processadas, Thomas Jefferson e James Madison, os Pais Fundadores mais responsáveis ​​por cristalizar o ethos americano dos direitos naturais e do devido processo legal, elaboraram documentos fundadores que articulavam condenações e proibições de tirania e comportamento tirânico nos Estados Unidos.

Assim, as palavras de Jefferson na Declaração de Independência caracterizam os direitos humanos como uma dádiva do Criador, que não pode ser retirada por decreto executivo ou promulgação legislativa – mas apenas por um veredicto do júri.

E as palavras de Madison na Quinta Emenda da Constituição declaram que "nenhuma pessoa será... privada da vida, da liberdade ou da propriedade sem o devido processo legal". O uso da palavra "pessoa" torna óbvio que o devido processo legal se aplica a todos os seres humanos.

O devido processo legal exige um julgamento justo por júri, com advogado e a oportunidade de confrontação de testemunhas e provas produzidas pelo governo. Exige também prova de culpa para além de qualquer dúvida razoável e com certeza moral perante um júri neutro, e não perante o acusador. E exige a condenação antes da imposição de uma pena prescrita por lei.

Isto era novo e radical em 1791, quando a Declaração dos Direitos foi ratificada, mas não é novo nem radical hoje. Hoje, o devido processo legal é a base do direito americano. É o que os advogados chamam a lei da letra preta: espera-se que aqueles que estão no governo a conheçam, a compreendam e a cumpram.”

 

E Napolitano continua:

 

A história americana está repleta de exemplos de comportamentos presidenciais pouco sérios em relação à Constituição. John Adams processou pessoas pelos seus discursos. Abraham Lincoln prendeu os seus críticos sem julgamento. Woodrow Wilson processou estudantes por lerem a Declaração de Independência à porta dos gabinetes de recrutamento. Franklin Roosevelt encarcerou americanos com base na raça. George W. Bush iniciou a vigilância em massa sem mandado. Barack Obama assassinou americanos não violentos e sem acusação no Iémen.

 

Alguma coisa disto aumentou a liberdade pessoal ou a segurança pública? Claro que não. Mas aumentou o medo público de um tirano na Casa Branca.

O valor constitucional subjacente é que os indivíduos são soberanos e o governo é limitado. Esta é a presunção unânime dos Fundadores na criação da República Americana. Os indivíduos são livres de exercer direitos naturais, e o governo é limitado pelo consentimento dos governados e pela Constituição que o definiu e, seguindo Jefferson, o acorrentou.

E isto exige que aqueles em cujas mãos depositamos a Constituição para salvaguarda a leiam, a compreendam e a cumpram — e cumpram os seus juramentos de a preservar, proteger e defender.

 

 

 

Atente-se também no que nos diz Slavoj Zizek, quando, de uma forma ligeira e divertida, nos vai chamar a atenção para o facto de as sociedades consideradas como as mais desenvolvidas da nossa época, serem muito idênticas no que se refere ao tipo e aos métodos de desenvolvimento que prosseguem. Todas elas seguem sistemas económicos capitalistas, cada vez mais assentes na vigilância e direção eletrónica consentida ou não dos seus cidadãos, numa construção totalitária devidamente articulada, em maior ou menor grau, entre empresas privadas e estado. 

Conta-nos então uma anedota que corria nos tempos da guerra fria, passada entre Richard Nixon dos EUA, Leonid Brezhnev da URSS e Eric Honecker da RDA, quando resolveram interrogar Deus para saberem qual seria o futuro reservado para os seus respetivos países.

Em resposta, Deus disse a Nixon: “No ano 2050, os EUA serão comunistas.” Nixon voltou-se de costas e começou a chorar. A Brezhnev, Deus disse: “No ano 2050, a União Soviética será uma província da China.” Brezhnev voltou-se de costas e começou a chorar. E finalmente Honecker perguntou: “E o que acontecerá à minha amada RDA?” Deus voltou-se de costas e começou a chorar.

Zizek vai depois transportar esta anedota para a atualidade, agora com novos personagens, desta vez com Putin, o presidente chinês Xi Jinping e Donald Trump. Eis a resposta de Deus para Putin: “A Rússia estará controlada pela China”. Putin voltou-se de costas e chorou. Para Xi, Deus disse: “A China continental será dominada por Taiwan”. Xi voltou-se de costas e chorou. E quando Trump faz a mesma pergunta sobre os EUA, Deus voltou-se de costas e chorou.

 

 

E já agora,  relembrar a “Brevíssima Síntese da História Contemporânea” de Galeano:

 

“Há já uns séculos que os súbditos se disfarçaram de cidadãos e que as monarquias se preferem chamar repúblicas.

As ditaduras locais, que se dizem democracias, abrem as portas à entrada avassaladora do mercado universal. Neste mundo, reino dos livres, somos todos um só. Mas somos um ou somos nenhum? Compradores ou comprados? Vendedores ou vendidos? Espiões ou espiados?

Vivemos presos entre garras invisíveis, atraiçoados pelas máquinas que simulam obediência e mentem, com cibernética impunidade, ao serviço dos seus patrões.

As máquinas mandam nas casas, nas fábricas, nos escritórios, nos seus escritórios, nas plantações agrícolas, nas minas e nas ruas das cidades, onde nós peões somos incómodos que perturbam o trânsito. E as máquinas mandam também nas guerras, onde matam tanto ou mais que os guerreiros fardados.”

 

(550) Eles têm um plano …

Tempo estimado de leitura: 11 minutos.

 

Todos estes bons rapazes, inteligentíssimos, querem ficar muito ricos e viver para sempre. E têm um plano: "...e se Deus não estiver do nosso lado, criaremos um que esteja."

 

A construção da Inteligência Artificial Geral aparece inicialmente como uma questão de utopia e não de lucro, embora o lucro se tenha tornado um impulsionador significativo.

 

Tecnologias avançadas permitirão à humanidade produzir abundância radical, tornarmo-nos imortais, colonizar o universo e criar uma civilização “pós-humana” em expansão entre as estrelas.

 

Enormes fundos secretos de dinheiro podem significar que o voto se tornou realmente ornamental.

 

 

 

 

Uma das formas que temos para nos conseguirmos situar nos tempos em que vivemos é tentarmos perceber, intuir, como é que os grandes grupos sócio-económicos-político-militares e seus detentores pensam e projetam a sua atuação.

Um desses grupos poderosos e seus detentores, é o constituído pelas empresas tecnológicas de Silicon Valley que, numa busca implacável pelo poder, dispondo de biliões e biliões de dólares para influenciar as políticas, têm vindo a controlar cada vez mais as nossas vidas.

Os seus diversos sistemas de pensamento (ideologias emergentes) têm vindo a espalhar-se e a serem aceites como se tratassem de verdadeiras filosofias consentâneas para as nossas vidas reais.

É pois importante percebermos como surgiram esses grupos com a corrida para a criação da Inteligência Artificial Geral (IAG), qual a sua ligação, dependência e interdependência relativamente a novos conceitos que aparentemente permitiram pensar a IAG, que supostamente por si só promoveram avanços tecnológicos. E como tudo isto acabou por gerar muito lucro, com todos os seus excessos.

Um dos seus críticos estudiosos, não deixa de observar que:

 

A construção da IAG aparece inicialmente como uma questão de utopia e não de lucro, embora o lucro se tenha tornado um impulsionador significativo, o que juntamente com os sonhos tecno-utópicos da IAG possibilitou inaugurar um mundo de fantasia paradisíaco entre os céus.”

 

 Em resumo, o que estamos a tentar perceber é porquê e como todos esses bons rapazes, inteligentíssimos, querem ficar muito ricos e viver para sempre.

E dizem ter um plano:

"... (e) se Deus não estiver do nosso lado, criaremos um que esteja."

 

 

Para nos orientarmos nesse labirinto, socorro-me dum estudo (que inclusivamente por si só nos fará entender o quão emaranhado/estranho/obscuro tudo isto está) de Nat Wilson Turner, “As Ideologias de Silicon Valley como uma Lente sobre os Acontecimentos Correntes” (“Silicon Valley Ideologies as a Lens for Viewing Currente Events”), onde vai resumir e discutir criticamente escritos de Emille P. Torres, de Ross Douthat, e de Matt Stoller.

 

Comecemos por Emille Torres

 

Na segunda da sua série de três partes sobre o que reconhece ser o pró-extincionismo (movimento de extinção humana voluntária) caraterístico de Silicon Valley, "Conheça os Radicais Pró-Extincionistas de Silicon Valley! (“Meet the Radical Silicon Valley Pro-Extinctionists!"), Torres vai focar-se sobre o impacto que a corrida para a construção da IAG (inteligência artificial geral) teve ou tem deste movimento.

Segundo ele, a corrida à IAG surgiu diretamente das ligeiras ideologias do movimento TESCREAL ligadas às figuras importantes de Silicon Valley  (T de transumanismo – transformar a condição humana aumentando as suas capacidades através do uso de tecnologias emergentes -, E de extrapianismo – melhoria contínua da condição humana através da ciência e tecnologia com a finalidade de lhe aumentar a sua extensão e ultrapassar limitações biológicas -, S de singularitarianismo – prevê a inevitabilidade da criação de uma superinteligência tecnológica -, C de cosmismo – a extensão da vida, imortalidade e ressurreição pela fusão com o cosmos por meios científicos -, R de racionalismo – a razão por si só como fonte de conhecimento ou prova -,  EA de altruísmo efectivo – advoga a imparcialidade através do cálculo dos benefícios por forma a obter o maior dos bens -, e L de longtermismo – influenciar o futuro a longo prazo da humanidade como prioridade moral).

A construção da IAG aparece assim inicialmente como uma questão de utopia e não de lucro, embora o lucro se tenha tornado um impulsionador significativo, o que juntamente com os sonhos tecno-utópicos da IAG possibilitou inaugurar um mundo de fantasia paradisíaco entre os céus literais. Assim sendo, não é possível compreender a corrida à IAG sem alguma compreensão das ideologias TESCREAL.

 

Para Torres, o movimento TESCREAL está profundamente entrelaçado a uma perspetiva pró-extincão, segundo a qual a nossa espécie, Homo sapiens, deve ser marginalizada, destituída de poder e, por fim, eliminada pelos nossos sucessores pós-humanos.

Mais especificamente, quase sem exceção, as visões dentro do movimento TESCREAL, situam-se algures entre o pró-extincionismo e o neutralismo da extinção. Para os pró-extincionistas de Silicon Valley a espécie humana não sobreviverá, enquanto o neutralismo da extinção afirma que não importa muito se a nossa espécie sobreviverá quando a pós-humanidade chegar.

 

Torres prossegue o seu artigo com resumos do pensamento de várias figuras de Silicon Valley, incluindo Hans Moravec, da Carnegie Mellon, Larry Page, o cofundador da Google, Richard Sutton, o vencedor do prémio Turing, o shitposter Beff Jezos, Ray Kurzweil, o profeta da singularidade, Sam Altman e Peter Thiel.

 

Sam Altman

Altman é apenas um dos principais responsáveis ​​pelo lançamento e aceleração da corrida em direção à IAG, acreditando que a transferência de mentes humanas para computadores se tornará possível ainda em vida. Foi uma das 25 pessoas que se inscreveram numa startup chamada Nectome para terem o cérebro preservado caso morresse prematuramente. A Nectome promete preservar os cérebros para que a sua microestrutura possa ser digitalizada e a informação resultante transferida para um computador, que pode então emular o funcionamento do cérebro. Ao fazê-lo, a pessoa que possuía o cérebro subitamente "acordará", alcançando assim a "ciberimortalidade".

 

Ou seja, se todas as pessoas do futuro forem apenas mentes carregadas (uploaded), então a nossa espécie terá desaparecido. Seremos, ou melhor, serão os pós-humanos a dominarem o mundo. Para os TESCREAListas, entre eles Altman, o que importa é que a continuação da "inteligência" ou da "consciência" se faça.

 

Peter Thiel

Thiel defende uma interpretação mais restrita do pró-extincionismo, segundo a qual apesar de nos tornarmos numa nova espécie pós-humana, esta espécie pós-humana não deveria ser inteiramente digital. Devemos manter os nossos substratos biológicos, embora num estado radicalmente transformado. Isto contrasta com a maioria das outras visões aqui discutidas, que são exemplos claros de eugenia digital, enquanto Thiel defende uma versão do pró-extincionismo que é uma variante pró-biológica do transumanismo (uma forma de eugenia).

 

Torres faz também referência a um lapso de Thiel que, quando foi entrevistado por Ross Douthat do NYT ("Peter Thiel e o Anticristo: O ator original da direita tecnológica que fala sobre IA, Marte e imortalidade" (“Peter Thiel and the Antichrist: The original tech right power player on A.I., Mars and immortality”), e lhe perguntaram se "preferia que a raça humana perdurasse", ele respondeu com um incerto "Uh —", o que levou Douthat a perguntar-lhe como é que ele conciliava estas suas visões com o seu alegado cristianismo, uma vez que a promessa do cristianismo é que se obtém o corpo e a alma perfeitos pela graça de Deus.

“Thiel: Bem, é — vamos articular isso.

Douthat: Pode ser que tenha uma forma herética de cristianismo que diga outra coisa.

Thiel: Sim, não sei. Penso que a palavra "natureza" não aparece uma única vez no Antigo Testamento. E depois há uma palavra em que, num sentido em que, da forma como eu entendo a inspiração judaico-cristã, ela se refere a transcender a natureza. Trata-se de ultrapassar as coisas. E o mais próximo que se pode dizer da natureza é que as pessoas são caídas. Isso é natural no sentido cristão, que você confundiu. E isso é verdade. Mas há algumas formas pelas quais, com a ajuda de Deus, se pode transcender e superar isso.”

 

Notar que num trabalho anterior de Torres à TruthDig, vem dizer-nos que no cerne do  movimento TESCREAL está uma visão “tecno utópica” do futuro. Antecipa um tempo em que as tecnologias avançadas permitirão à humanidade realizar coisas como: produzir abundância radical, reengenharmo-nos, tornarmo-nos imortais, colonizar o universo e criar uma civilização “pós-humana” em expansão entre as estrelas, repleta de triliões e triliões de pessoas. E que a forma mais direta de concretizar esta utopia é construindo uma IAG superinteligente.

 

Torres acredita que estas ideologias são a razão central pela qual empresas como a OpenAI, financiada principalmente pela Microsoft, e a sua concorrente, a Google DeepMind, estão a tentar criar “inteligência artificial geral” em primeiro lugar.

 

Quanto àquela parte em que a procura do lucro acaba também por ter o seu lugar, Torres vai, curiosamente, referir David Z. Morris, cujo livro “DeepSeek e o Culto do Assassinato da IA” defende que “o racionalismo liga-se a uma onda de assassinatos, apropriação indevida de FTX e mercados em queda”.

 

Desse artigo pode ler-se:

 

“(O racionalismo) está no cerne do desfalque desenfreado de Sam Bankman-Fried (SBF) na #FTX, dos quais 500 milhões de dólares foram para a Anthropic, uma startup impulsionada pela "Segurança em IA" (AI Safety) que emprega Amanda Askell, ex-mulher do fundador da Effective Altruism, Will MacAskill. 5 milhões de dólares em dinheiro roubado por SBF foram também diretamente para o Centro de Racionalidade Aplicada (CFAR), uma das duas organizações de Yudkowsky. Meio milhão em fundos da FTX também ajudou a facilitar a compra de um hotel que se tornou a sede de uma subsidiária da CFAR chamada Lightcone Research, que contou notoriamente com a presença de vários eugenistas e supremacistas brancos em eventos.”

 

Isto também ajuda a explicar que a OpenAI e outras startups de inteligência artificial dos EUA são movidas por algumas das mesmas ideias que levaram os racionalistas marginais à loucura.

Já ocorreram pelo menos OITO mortes violentas nos últimos três anos. anos ligados, em graus variados, a fações dissidentes do movimento racionalista fundado por Eliezer Yudkowsky em São Francisco.

Para Torres, a fonte do conflito é que estes atores mal-intencionados pegaram nas ideias básicas de Yudkowsky, sobretudo nas ideias sobre a destruição iminente da humanidade pela IA, e levaram-nas a uma conclusão lógica – ou, pelo menos, a uma conclusão racionalista. Esta onda de assassinatos é apenas a manifestação mais extrema de elementos de seita que surgiram do próprio movimento racionalista há quase uma década, incluindo um condicionamento semelhante ao do MKUltra tanto no Leverage Research – outro grupo dissidente aparentemente expulso do próprio racionalismo após certas revelações – como dentro do próprio Centro para o Altruísmo Eficaz.

 

No seu artigo “FTX, Racionalismo e Inteligência dos EUA: Uma Teoria da Conspiração” (um excerto do seu livro Roubando o Futuro: Sam Bankman-Fried, Fraude de Elite e o Culto da Tecnoutopia), David Morris ligou alguns pontos alarmantes:

 

O Centro de Racionalidade Aplicada, que recebeu (e resistiu a devolver) fundos roubados aos clientes da FTX por Sam Bankman-Fried e os seus coconspiradores, tem uma impressionante semelhança com as agendas de lavagem cerebral individual e de engenharia social em grande escala que impulsionaram alguns dos programas mais perturbadores da Agência Central de Inteligência (CIA).

 

Ora, com a revelação de que um grupo de racionalistas desonestos conhecido como "Zizianos" foi ligado a uma onda de assassinatos nos EUA, parece justificado explorar a possibilidade de o movimento racionalista não ser meramente um ethos equivocado tornado tóxico por um isolamento semelhante ao de um culto. Colocados num contexto mais vasto, os seus princípios e práticas começam a assemelhar-se tanto ao Movimento do Potencial Humano, centrado em instituições como o Instituto Esalen, como, em subgrupos marginais que se separaram do próprio Racionalismo, à experimentação humana ilícita conduzida pela CIA a partir da década de 1950, sob o nome de código MKUltra.

 

O artigo de Morris, “O que é o TESCREALismo? Mapeando o Culto da Tecnoutopia”, pode ajudar-nos a regressar aos acontecimentos atuais:

 

O mito da IA ​​avançada é a razão pela qual os esforços baseados na realidade para tornar os algoritmos de IA existentes seguros para humanos vivos têm quase zero aceitação entre os maiores defensores da “segurança da IA”. Da mesma forma que Sam Bankman-Fried roubou fundos de clientes para fazer apostas a longo prazo, os atuais líderes da IA ​​estão a descartar ativa e abertamente os riscos materiais atuais dos algoritmos de aprendizagem automática e a concentrar-se, em vez disso, num futuro a longo prazo que preveem com confiança, sem a mínima evidência real. (Apenas duas das suposições infundadas da fantasia pessimista são que a IA se tornará auto-aprimorável e que dominará facilmente a nanotecnologia.)

 

Esta demonstração patente de insensatez pode ser a razão subjacente mais profunda que a indústria tecnológica teve para expurgar Timnit Gebru. A visão da IA ​​partilhada por pessoas como Sam Altman deriva substancialmente de ficção científica como O Exterminador Implacável, de James Cameron, e remonta a R.U.R.e, de Karel Capek, a origem da palavra "robô". A peça de Capek de 1923 precedeu em muito qualquer coisa parecida com a IA, deixando claro que o "robô" intencional, humanoide e pensante sempre foi principalmente uma metáfora para a dialética muito mais complexa pela qual a tecnologia criada pelo homem se torna uma ameaça à essência humana. Os singularitaristas cometeram o erro infantil de confundirem estes contos de fadas simplificados com a complexidade da realidade e, enquanto Gebru e a sua turma se mantiverem empenhados em descrever como a tecnologia realmente funciona, a fantasia coletiva de uma IA superinteligente, mas incrivelmente perigosa, estará ameaçada.

 

Norris também liga o TESCREALismo à publicação recém-lançada The Argument e aos irmãos Abundance no seu "Altruísmo Eficaz num Fato de Pele: "The Argument" está a Lavar a Austeridade":

 

O lançamento do novo veículo noticioso "liberal", The Argument, foi inequivocamente hilariante, fundamentalmente porque a maioria dos seus principais escritores, particularmente Matt Yglesias e Kelsey Piper, não são propriamente "liberais" em qualquer sentido americano comummente entendido, mas sim "de centro-direita a secretamente eugenistas". Piper e Yglesias estão ambos anteriormente ligados à Vox, e o The Argument conta ainda com Derek Thompson como copywriter – parceiro de Ezra Klein no projeto ideologicamente muito semelhante “Abundance Liberalism” ("Liberalismo da Abundância"), que visa, em grande parte, cooptar a retórica de desregulação da direita.

 

Ao analisar o financiamento de The Argument, torna-se muito claro porque é que esta publicação "liberal" se dedica a minar a defesa de um Estado de bem-estar social. The Argument é financiado e composto maioritariamente por "liberais", não por "liberais", mas por uma mistura de Altruístas Eficazes, como Dustin Moskovitz, que se afastou estrategicamente desta marca após o desastre da FTX ter demonstrado o seu vazio estratégico e ideológico; e entidades ligadas a fontes de financiamento de extrema-direita, entre as quais Peter Thiel e os Irmãos Koch. Isto é "liberalismo" em 2025.

 

 

Freddy deBoer tem algumas reflexões complementares sobre Ezra Klein que não se ligam explicitamente às ideologias de Silicon Valley, mas fornecem insights adicionais:

 

Klein, na sua sincera credulidade em relação às alegações dos maximalistas da IA, mostra-nos uma forma como esta recusa se concretiza. Ezra está fascinado pela perspetiva de uma transformação tecnológica radical, pela possibilidade de os modelos generativos, a robótica ou a biotecnologia reconstruir completamente a condição humana.

 

Entrevistou dezenas de pessoas sobre o assunto e, embora hesite e restrinja, há sempre uma abertura subjacente à ideia de que estamos à beira de um futuro de ficção científica. "Pessoa após pessoa... vêm ter comigo dizendo... Estamos prestes a chegar à inteligência artificial geral[!]", diz Ezra, no seu estilo ofegante, sem parar para reconhecer que cada uma destas pessoas é alguém que tem investimento financeiro direto não na realidade e iminência da IA, mas na impressão de que ela é real e iminente.

 

Klein não quer abdicar da possibilidade de viver em Star Trek, Blade Runner ou Exterminador Implacável; quer acreditar que as nossas vidas podem ser tão completamente alteradas que o peso da existência quotidiana será aliviado. E prometo que não estou a desmentir nada quando digo que, enquanto considero a maioria dos evangelistas da IA ​​charlatães hipócritas, considero tudo o que Ezra diz transbordante de sinceridade e sentimento. O que, analiticamente, claro, é exatamente o problema. Ele está demasiado ansioso para acreditar.

...

Klein quer que a história da IA ​​​​signifique que estamos à beira de uma sociedade pós-escassez, que a dura rotina da política e do trabalho pode em breve ser evitada por máquinas milagrosas; é suficientemente esperto para não dizer a outra parte em voz alta, que é que quer pilotar um robô nas areias de Marte, para guiar o seu X-Wing até à boca de um buraco de verme que o levará sabe-se lá para onde.

...

As fantasias de Klein correm o risco de destruir a economia mundial.

 

Klein está desesperado para acreditar em magia. O que ele não percebe é que as suas fantasias são estruturadas e guiadas por "pensadores" de Silicon Valley, igualmente comprometidos com uma visão fantasiosa da realidade.

 

Infelizmente para todos os outros, eles têm dinheiro e poder para impor estas fantasias a todos nós.

 

E, já agora, sobre outro tipo de subversão a que a IAG pode conduzir, escutemos Matt Stoller, que no seu artigo "Existe um Plano de Silicon Valley para Subverter as Eleições?” (“Is There a Silicon Valley Plan to Subvert Elections?”), essencialmente nos  revela "...a criação de um novo fundo político secreto por parte dos titãs de Silicon Valley. Não quero ser alarmista, mas se correr como planeado, poderá subverter funcionalmente as eleições nos Estados Unidos."

Apresenta como exemplo, a Fairshake (comité de ação política fundado pela indústria de criptomoedas), que tem conseguido alterar o apoio da maioria dos políticos sem gastar um tostão, através da criação de factos alternativos da vida pessoal de aspirantes a cargos públicos não gostariam de perder apenas por causa do que consideram ser uma política menor em relação às finanças. Empresas como a Fairshake conseguiram tudo o que queriam: estão agora a executar a política de criptomoedas para Trump e aterrorizam a maioria dos membros do Congresso, levando-os a votar no que bem entendem. Para 2026, a Fairshake acumulou ainda um outro grande fundo de reserva, pelo que é improvável que o poder das criptomoedas seja prejudicado até que haja uma crise financeira.

A lição da Fairshake não passou despercebida a outros em Silicon Valley. Marc Andreessen, que faz parte do conselho da Meta e está envolvido na Fairshake, tem vindo a organizar esta estratégia noutras áreas. O CEO da Meta, Mark Zuckerberg, e os investidores de capital de risco em IA optaram agora por lançar os seus próprios fundos secretos ao estilo da Fairshake, impossibilitando assim a regulamentação da IA ​​genérica ou das grandes empresas tecnológicas.

 

O efeito líquido destas quantidades de dinheiro é poder tornar funcionalmente impossível promulgarem-se políticas públicas em torno da IA ​​através do sistema democrático. À medida que a IA se torna mais importante, isto significa que a legislação americana irá progredindo de acordo com que Andreessen e alguns outros titãs desejam, fechando assim espaços à democracia.

 

Sempre foi difícil progredir, especialmente após o aparecimento dos Citizens United (grupo de corporações, de interesses especiais e patronos ricos, que pretendem gastar todo o dinheiro que quiserem nas eleições) uma vez que o dinheiro abafa muitas boas políticas. De facto, o que estamos a assistir são já as fases finais de uma tentativa organizada, a partir da década de 1970, de permitir que o dinheiro se sobreponha à democracia. Estes enormes fundos secretos podem significar que o voto se tornou realmente ornamental (sobre o tema, aconselho a série em podcast o Plano Mestre da Lever).

 

Todos estes bons rapazes, inteligentíssimos, que querem ficar muito ricos e viver para sempre. E têm um plano … para eles.

 

 

(549) Um mártir de uma globalização

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

O assassinato de Kirk é um prenúncio de uma desintegração social em larga escala.

 

Toda a direita precisa de se unir. Já chega desta treta da luta interna. Estamos a enfrentar forças demoníacas vindas do inferno, Matt Walsh.

 

A canibalização da sociedade, uma tentativa fútil de recriar uma América mítica, acelerará a desintegração.

 

 

 

 

A 12 de setembro de 2025, Chris Hedges publicou o seguinte artigo, “The Martyrdom of Charlie Kirk” (O Martírio de Charlie Kirk) que julgo ser bastante representativo do estado atual vivido nos EUA e sua provável repercussão no chamado mundo ocidental:  

 

O assassinato de Charlie Kirk prenuncia uma nova e mortífera fase na desintegração de uns Estados Unidos fragmentados e altamente polarizados. Enquanto a retórica tóxica e as ameaças atravessam as divisões culturais como granadas de mão, por vezes transbordando para a violência real — incluindo o assassinato da presidente emérita da Câmara dos Representantes do Minnesota, Melissa Hortman, e do seu marido, e as duas tentativas de assassinato contra Donald Trump — o assassinato de Kirk é um prenúncio de uma desintegração social em larga escala.

 

O seu assassinato deu ao movimento que representava — baseado no nacionalismo cristão — um mártir. Os mártires são a alma dos movimentos violentos. Qualquer hesitação quanto ao uso da violência, qualquer discurso de compaixão ou compreensão, qualquer esforço para mediar ou discutir, é uma traição ao mártir e à causa que ele morreu a defender.

 

Os mártires sacralizam a violência. São usados ​​para virar a ordem moral de cabeça para baixo. A depravação torna-se moralidade. As atrocidades tornam-se heroísmo. O crime torna-se justiça. O ódio torna-se virtude. A ganância e o nepotismo tornam-se virtudes cívicas. O assassinato torna-se bom. A guerra é a estética final. É isso que está para vir.

 

Precisamos de ter uma determinação férrea”, disse o estratega político conservador Steve Bannon no seu programa “War Room”, acrescentando: “Charlie Kirk é uma vítima da guerra. Estamos em guerra neste país. Estamos em guerra.”

 

Se não nos deixam em paz, então a nossa escolha é lutar ou morrer”, escreveu Elon Musk no X.

 

Toda a direita precisa de se unir. Já chega desta treta da luta interna. Estamos a enfrentar forças demoníacas vindas do inferno”, escreveu o comentador e autor Matt Walsh no X. “Deixem as quezílias pessoais de lado. Agora não é o momento. Isto é existencial. Uma luta pela nossa própria existência e pela existência do nosso país.”

 

O congressista republicano Clay Higgins escreveu que usará "a autoridade do Congresso e toda a influência com grandes plataformas tecnológicas para determinar o banimento imediato e vitalício de qualquer publicação ou comentário que menospreze o assassinato de Charlie Kirk..." Afirma ainda: "Também vou atrás das suas licenças e autorizações comerciais, os seus negócios serão colocados em listas negras agressivas, devem ser expulsos de todas as escolas e as suas cartas de condução devem ser revogadas. Basicamente, vou cancelar com extremo preconceito estes animais malignos e doentes que celebraram o assassinato de Charlie Kirk."

 

O cofundador da Palantir, Joe Lonsdale, aproveitou a morte de Kirk para defender o derrube da "aliança vermelho-verde" dos "comunistas e islamitas", que, segundo ele, se uniram para destruir a civilização ocidental. Propõe uma aplicação onde os cidadãos podem publicar fotos de crimes e de sem-abrigo em troca de "reembolsos no imposto predial".

 

O comediante de extrema-direita Sam Hyde, que tem quase meio milhão de seguidores no X, escreveu em resposta ao anúncio de Trump sobre a morte de Kirk: "Tempo de fazer o seu trabalho e tomar o poder... se quer ser mais do que uma nota de rodapé na secção 'American Collapse' dos livros de história do futuro, é agora ou nunca". No seu tweet, lista membros do governo e empreiteiros militares privados.

 

O ator conservador James Woods alertou: "Caros esquerdistas: podemos ter uma conversa ou uma guerra civil. Mais um tiro do vosso lado e não voltarão a ter essa escolha". O seu tweet foi partilhado por quase 20.000 pessoas, recebeu 4,9 milhões de visualizações e mais de 96.000 gostos.

 

Estas são uma amostra da enxurrada de sentimentos vitriólicos partilhados e aplaudidos por dezenas de milhões de americanos.

 

A desapropriação da classe trabalhadora, 30 milhões de pessoas que foram despedidas devido à desindustrialização, gerou raiva, desespero, deslocação, alienação e fomentou o pensamento mágico. Alimentou teorias da conspiração, um desejo de vingança e uma celebração da violência como purgante para a decadência social e cultural.

 

Os fascistas cristãos — como Kirk e Trump — aproveitaram-se astutamente deste desespero. Eles atiçaram as brasas. A morte de Kirk irá incendiá-las.

 

Os dissidentes, os artistas, os gays, os intelectuais, os pobres, os vulneráveis, as pessoas de cor, os que são indocumentados ou que não repetem irrefletidamente a cantilena de um nacionalismo cristão pervertido, serão condenados como contaminantes humanos a extirpar do corpo político. Tornar-se-ão, como em todas as sociedades doentes, vítimas sacrificiais na vã tentativa de alcançar a renovação moral e de recuperar a glória e a prosperidade perdidas.

 

A canibalização da sociedade, uma tentativa fútil de recriar uma América mítica, acelerará a desintegração. A embriaguez da violência — muitos dos que reagiram à morte de Kirk pareciam eufóricos com um banho de sangue iminente — autoalimentar-se-á como uma tempestade de fogo.

 

O mártir é vital para a cruzada, neste caso, para livrar a América daqueles a quem Trump chama "esquerda radical".

 

Os mártires são homenageados em cerimónias e atos de memória para lembrar os seus seguidores da retidão da causa e da perfídia daqueles que são culpados pela sua morte. Foi o que Trump fez quando chamou a Kirk "um mártir da verdade e da liberdade" numa mensagem vídeo a 10 de setembro, concedeu a Kirk a Medalha Presidencial da Liberdade e ordenou que as bandeiras fossem colocadas a meia haste até domingo. É por isso que o caixão de Kirk será levado de volta para Phoenix, no Arizona, no Air Force Two.

 

Kirk foi um exemplo do nosso emergente fascismo cristão. Propagava a Teoria da Grande Substituição, que afirma que os liberais ou os "globalistas" permitem a entrada de imigrantes não brancos no país para substituir os brancos, distorcendo as tendências imigratórias e transformando-as em conspiração. Era islamofóbico, tweetando: "O islamismo é a espada que a esquerda está a usar para degolar a América" ​​​​e que "não é compatível com a civilização ocidental".

 

Quando a YouTuber infantil Sra. Rachel disse: "Jesus diz para amar a Deus e ao próximo como a si mesmo", Kirk retorquiu que "Satanás citou muitas escrituras" e acrescentou: "Já agora, Sra. Rachel, talvez queira abrir essa sua Bíblia, numa parte menos referenciada da mesma parte das escrituras, no Levítico 18, que diz que se deitará com outro homem e será apedrejada até à morte".

 

Exigiu a revogação da Lei dos Direitos Civis de 1964 e menosprezou líderes dos direitos civis, como Martin Luther King. Era degradante em relação aos negros: "Se estou a lidar com alguém no atendimento ao cliente que é uma mulher negra imbecil... ela está lá por causa da ação afirmativa?" Disse que "negros que rondam" estão a visar pessoas brancas "por diversão". Culpou o movimento Black Lives Matter por "destruir a estrutura da nossa sociedade".

 

Kirk insistiu que a eleição de 2020 foi roubada a Trump. Fundou a  Professor Watchlist e a School Board Watchlist para excluir professores e mestres que tivessem o que chamou de agendas de "esquerda radical". Defendeu as execuções públicas televisionadas, insistindo que deveriam ser obrigatórias para as crianças.

 

A ideia de que defendia a liberdade de expressão e a liberdade é absurda. Era inimigo de ambas.

 

Kirk, que era um defensor do culto de Trump, personificava a hipermasculinidade que está no cerne dos movimentos fascistas. Esta era talvez a sua principal atração pelos jovens, especialmente pelos homens brancos. Alegou que há "uma guerra contra os homens", fetichizou as armas e vendeu Trump aos seus seguidores como um verdadeiro homem.

 

"Há muitas formas de chamar Donald Trump", escreveu. "Nunca ninguém lhe chamou feminino. Trump é um dedo do meio gigante para todos os monitores de auditório que atacavam os jovens por simplesmente existirem. É um grande "FODA-SE" para o establishment feminista que nunca foi desafiado antes de descer a escada rolante dourada. A maior parte dos media não se apercebeu disso. Os jovens não."

 

A história mostrou o que vem a seguir. Não será agradável. Kirk, elevado ao martírio, dá aos que procuram extinguir a nossa democracia a licença para matar, tal como Kirk foi morto. Isto remove as poucas restrições que ainda existem para nos proteger do abuso estatal e da violência dos justiceiros. O nome e o rosto de Kirk serão usados ​​para acelerar o caminho para a tirania, que é como ele teria desejado.

 

 

(548) Negócio de bandidos.

Tempo estimado de leitura: 10 minutos.

 

Somente então, à beira do precipício, nos é dado compreender que “tudo o que nos ensinam é falso”, Henry Miller.

 

A crise moral do século XIX apenas cedeu lugar à bancarrota espiritual do século XX. É o ‘tempo dos assassinos’, e não há possibilidade de engano. A política tornou-se negócio de bandidos, Henry Miller.

 

 A morte de um líder político cuja carreira seja considerada como representando um perigo para a causa da liberdade, pode ser considerada como necessária […] Nenhumas instruções para assassinatos devem ser escritas ou gravadas, in A Study of Assassination, Manual da C.I.A.

 

“Eles têm aproximadamente um minuto para viver. Trinta segundos. Dez, nove, oito”. Ouviu-se uma explosão. E o oficial disse, “Desapareceram”, a morte de Suleimani, contada por Trump.

 

 

 

Independentemente de todas as atrocidades praticadas pelos “nossos” serem sempre louvadas, desculpadas ou ignoradas (os “outros” farão o mesmo relativamente aos “seus”), o descaramento com que elas nos têm vindo a ser apresentadas diz muito sobre os tempos em que estamos a viver.

Recentemente, assassinatos, como os dos onze alegados traficantes de droga venezuelanos numa embarcação em águas internacionais pelas forças armadas dos EUA por ordem direta do Presidente, e torturas, como as de Mohammed al-Baluchi, preso em Guantánamo, em que o juiz de primeira instância que aceitou a confissão de culpa de Mohammed e que estando familiarizado com as mais de 40.000 páginas de documentos do caso, decidiu que fora “torturado de forma constante mais de 1.000 vezes, […]  sujeito a afogamento simulado, sodomizado, privado de sono durante longos períodos e acorrentado como um pretzel de modo que os seus músculos estivessem constantemente sob tensão, […] e onde agentes da CIA em aprendizagem se revezavam para lhe bater com a cabeça contra a parede” (como nos informa Andrew Napolitano, “The Feds Defend their Tortures Again”), são despudorada e intencionalmente exibidos.

Para uma visão mais alargada do assunto, sugiro revisitar o blog de 4 de março de 2020, “Tempo dos assassinos”, que passo a transcrever na íntegra:

 

      Um dos melhores escritos de Henry Miller talvez seja o seu pequeno estudo sobre Rimbaud, “consequência do fracasso de traduzir, da maneira desejada, Uma Estação no Inferno”. Nele, Miller exorta a América a “conhecer melhor essa figura lendária”, agora mais do que nunca, porquanto a “existência do poeta (tanto no sentido amplo quanto no específico) nunca esteve tão ameaçada”.          

E justifica esta opinião sobre o destino que a sociedade americana reserva aos poetas, remetendo-nos para o necrológio que Kenneth Rexroth escreveu, “Não Matarás”, (Thou Shalt Not Kill) (2), quando soube da morte de Dylan Thomas, autor do Portrait of the Artist as a Young Dog. Segundo Miller, a categoria e a condição do poeta revelam o verdadeiro estado de vitalidade de um povo.

Para Miller, tratam-se sem dúvida de assassinatos, porque “quando se sufoca a voz do poeta, a história perde todo o seu sentido e a promessa escatológica surge como uma nova e apavorante aurora na consciência do homem. Somente então, à beira do precipício, nos é dado compreender que ‘tudo o que nos ensinam é falso’”.

Vivemos inteiramente no passado, alimentados de ideias mortas, crenças mortas, ciências mortas. E é o passado que nos está engolindo, não o futuro. “O futuro sempre pertenceu e sempre pertencerá ao – poeta […] O futuro é todo seu, mesmo que não haja futuro.”

Quando o poeta não pode mais falar em nome da sociedade, mas apenas em seu próprio nome, é sinal de que nós estamos nas últimas. Como ele, ou renunciamos a tudo que a nossa civilização representou até agora, e tentamos construir tudo de novo, ou iremos destruir tudo com as nossas próprias mãos.

Temos andado a fugir desde o início dos tempos. O destino alcança-nos facilmente. Vamos ter a nossa Estação no Inferno, todo homem, mulher e criança identificados com esta civilização […] O homem, renegado, perdeu a fé no seu semelhante. A falta de fé é universal. E nisto até o próprio Deus é impotente. Pusemos a nossa fé na bomba e é a bomba que atenderá as nossas preces.

[…] Chegámos ao fundo? Ainda não. A crise moral do século XIX apenas cedeu lugar à bancarrota espiritual do século XX. É o ‘tempo dos assassinos’, e não há possibilidade de engano. A política tornou-se negócio de bandidos.

 

Tudo o acima exposto, e muito mais, consta dessa pequena obra de Miller, Tempo de Assassinos (The Times of the Assassins).

 

 Em 1953, para ajudar a melhor cumprir a missão de retirar do poder o presidente da Guatemala, a C.I.A. elaborou um manual intitulado “Um Estudo do Assassinato” (A Study of Assassination) (1).

 Como bom manual, começa pela definição de assassinato:

a morte planeada de uma pessoa que não está sob a jurisdição legal do executante, que não está à mercê do executante, que foi selecionado por uma organização de resistência para ser morto, e cuja morte seja vantajosa para essa organização”.

E quando deve ser utilizado?

Deve-se assumir que tal medida nunca será ordenada ou autorizada por qualquer Comando Central dos EUA, muito embora em circunstâncias excecionais possam concordar com a execução desde que feitas por membros de um serviço estrangeiro associado […] Nenhumas instruções para assassinatos devem ser escritas ou gravadas.

Quais as justificações?

 “O assassínio de pessoas responsáveis por atrocidades ou atos reprováveis podem ser vistos como uma punição justa. A morte de um líder político cuja carreira seja considerada como representando um perigo para a causa da liberdade, pode ser considerada como necessária. Mas o assassinato pode ser encarado com consciência tranquila. Contudo, pessoas que forem moralmente impressionáveis não o devem tentar.

 Depois, passa para as normas mais práticas, tais como a classificação das técnicas e seus executantes, o planeamento a seguir, os tipos de acidentes, as drogas, a escolha das armas, explosivos, finalizando com a descrição de alguns exemplos célebres de assassinatos ou tentativas falhadas (de Marat, a Ghandi, passando por Lincoln, Rasputine, Trotsky, Hitler, Truman, Mussolini e outros).

 

O assassinato como ferramenta a utilizar pelo Estado, pelos governos e governantes, teve sempre os seus apoiantes e os seus adversários. O teólogo do século XVI, Thomas More, recentemente canonizado como santo pela Igreja Católica, defendia que o assassinato de “um príncipe inimigo” só deveria ser equacionado se daí se obtivessem “grandes vantagens” pela salvação de muitas vítimas inocentes.

No século XVII, o diplomata e jurista holandês, Hugo Grotius, publica em 1625 a afamada obra De Jure Belli ac Pacis (Sobre a Lei da Guerra e da Paz) em que lançava as bases para a moderna legislação internacional, considerava que “era permitido matar um inimigo seja em que lugar fosse”.

A partir daí, por razões que desconhecemos, talvez pelo eclodir das revoluções americana e francesa, a luz do Iluminismo, tenha conduzi a uma descompressão das sociedades, a um tempo de progresso bom para a economia, ou por razões mais comezinhas como o dos executantes dos serviços secretos não se quererem matar uns aos outros, foi também crescendo entre os líderes políticos a rejeição à legitimação do assassinato mútuo. Thomas Jefferson, descrevia em 1789, o “assassinato, o veneno e o perjúrio” como abusos incivilizados que não deviam ter lugar no século XVIII.

 

Contudo, o século XX veio pôr fim a essa “trégua civilizacional”. É assim que durante a Segunda Guerra, espiões britânicos treinaram agentes checoslovacos para matarem o general nazi Reinhard Heydrich (um dos arquitetos da “Solução Final”), e muitos governos (entre eles o soviético, o britânico, o americano) tentaram, em vão, assassinar Adolfo Hitler.

Após a guerra, os futuros dirigentes de Israel fizeram da perseguição dos nazis uma estratégia de sobrevivência para a sua Nação, para que não lhes voltasse a acontecer outro Holocausto. Isto apesar de David Ben-Gurion, o primeiro primeiro-ministro de Israel, se mostrar contra o terrorismo pessoal, contra o assassinato de nazis alemães, por entender que seria bastante mais útil recrutá-los para a Mossad.

Em 1975, o Comité Church do congresso americano, começou a investigar as alegações da utilização abusiva do assassinato individual por parte das agências de inteligência e informação. No ano seguinte, são reveladas as tentativas feitas entre 1960 e 1965 para eliminar Fidel Castro (oito tentativas, incluindo o método da caixa de charutos envenenados), bem como de outros políticos.

 O presidente Gerald Ford decide então emitir uma ordem executiva segundo a qual nenhum funcionário ou empregado do governo dos EUA “poderia envolver-se, ou conspirar para se envolver, em assassinatos políticos”. Em 1981, Ronald Reagan, alarga o alcance da ordem, retirando o “político”. “Assassinatos”, ponto.

Contudo, cinco anos depois, como retaliação à morte de cinco militares americanos numa discoteca em Berlim, a administração Reagan ordena o bombardeamento do local em que Muammar al-Gaddafi vivia.

Mas, a partir de julho de 2001, aparentemente devido a novos interesses económico-políticos, os EUA começam a condenar Israel pelo que disseram ser “assassinados dirigidos” contra palestinianos, “mortes extrajudiciais, que nós não apoiamos”!

 

Dois meses depois, aconteceram os ataques de 11 de setembro, e a partir daí, acabaram-se as restrições. De imediato, o presidente Bush autorizou o uso de drones, operações de comandos, ataques com mísseis de cruzeiro, fora das zonas de guerra. Qualquer resistência que pudesse haver a ataques de precisão dirigidos contra indivíduos desapareceu, e os limites da condução da guerra deixaram de ter qualquer ligação com o campo de batalha.

Aumentou também a cooperação entre a C.I.A. e a Mossad israelita, discutindo-se a efetivação de operações conjuntas.

Com o aparecimento das armas de precisão e a utilização de telemóveis, aumentaram-se as possibilidades para o planeamento e execução das missões para matar. Para se ter uma ordem de grandeza, entre 1948 e 2000, Israel conduziu aproximadamente 500 missões para matar. Entre 2000 e 2018, Israel conduziu pelo menos 1800 dessas operações. (3)

Nos EUA, a administração Bush lançou, desde 2001, pelo menos 59 operações deste tipo no Paquistão, Iémen e Somália. Nos oito anos seguintes da administração Obama, o número subiu para 572, a que se deve acrescentar em 2011 o raid que matou Osama bin Laden no Paquistão.

 

Para ultrapassar os problemas legais e morais que tal tipo de operações lhes punha, a administração Obama vai socorrer-se de dois conceitos. Para ultrapassar a interdição da ordem executiva sobre assassinatos, passa a chamar a tais operações, “mortes dirigidas” (targeted killings), o que mais tarde lhes vai pôr o problema da existência de uma lista prévia (o que evidentemente seria ilegal) com nomes de pessoas a serem mortas.

 Para ultrapassar os escrúpulos morais, vai socorrer-se do conceito cristão de “guerra justa” (4):

 “Se o alvo a abater for um alvo legitimamente militar e se tudo que puder ser feito para atingir o alvo for feito de forma a evitar que se matem pessoas inocentes, então -e lamento dizê-lo – está O.K.

 

Na prática, a guerra com drones torna indistinguíveis as mortes dirigidas dos assassinatos. Numa tentativa para melhor disfarçar, introduzem-se considerações sobre “ataque iminente”, mas, mais uma vez, na prática tal significará:

Este é um terrorista, e, em determinada altura deve ter, de uma maneira ou outra, participado ou planeado um ataque terrorista.  Não somos agora capazes de o parar, portanto o melhor é matá-lo”.

 

Contudo, e resumindo: no final da presidência de Obama, após quinze anos de ataques com drones, os americanos já não lhes prestavam muita atenção. Segundo as várias previsões, a grande maioria dos americanos era favorável a esses ataques dirigidos. Trump segue-lhe o exemplo: nos últimos três anos, foram feitos pelo menos 262 ataques, o que representa um acréscimo de 20%.

 

Na determinação dos alvos, é grande a troca de informações entre os serviços americanos e israelitas. Os suspeitos são seguidos dias, meses e anos, tendo sempre em vista o seu possível abate, decidido sempre a nível superior. Lembremos, entre outros, a destruição do reator nuclear da Síria, o assassinato dos principais cientistas nucleares iranianos e de outros dirigentes do Hamas.

Figuras como o líbanês Imad Mughniyed (técnico especialista no uso de bombardeamento sincronizado por forma a maximizar vítimas, arquiteto da estratégia militar do Hezbollah), o general brigadeiro sírio Muhammad Suleiman (supervisor nuclear que construiu o arsenal de armas químicas da Síria) e o major general Qassem Suleimani (comandante chefe do Corpo Revolucionário do Irão, Quds, força de elite que conduzia operações fora do Irão com o intuito de fazer avançar a revolução iraniana), eram alvos permanentes e preferenciais.

Assassinados os dois primeiros, em fevereiro (à bomba, pela Mossad) e agosto (snipers de uma unidade de fuzileiros israelita) de 2008, restava Suleimani. No dia 3 de janeiro de 2020, um ataque americano a partir de um drone, MQ-9 Reaper, acabou com a vida do importante chefe iraniano.

 

Instantes depois do Pentágono ter confirmado a morte, Trump colocou num seu tweet a imagem de uma bandeira americana.  Mais tarde, num discurso para os convidados pagantes de Mar-a-Lago, contou a operação, recordando o que lhe ia dizendo um oficial militar:

Eles têm aproximadamente um minuto para viver. Trinta segundos. Dez, nove, oito”. Ouviu-se uma explosão. E o oficial disse, “Desapareceram.”

 

Segundo a Convenção de Haia de 1907, o assassinato de um membro oficial de um governo estrangeiro não era permitido, a não ser em tempo de guerra. Daí que inicialmente se pensasse que a morte de Suleimani pudesse vir a provocar retaliações eminentes sobre os americanos.

Perante as perguntas e as críticas, a administração americana alterou a posição assumida, invocando que Suleimani se preparava para fazer uma “série de ataques”. Só que depois, Trump vem claramente dizer que isso não interessava, porquanto Suleimani era “um homem terrível, com um passado horrível de mortes americanas”.

 

Ou seja, a procura da cobertura pela legalidade deixava de ser importante. E é nisto que este caso é diferente. É que Suleimani, não era o chefe de uma rebelião sem estado (ex. Bin Laden), mas um alto representante de uma das nações mais populosas do Médio-Oriente, que, apesar de todo o seu envolvimento com o terrorismo, não estava em estado de guerra convencional com os EUA.

Ao adotar um procedimento de ataque a um inimigo só previsto para ações em tempo de guerra, a administração americana só podia utilizar a cobertura legal se tivesse atuado no convencimento de que estava em guerra com o Irão. O que parece ser a sua desculpa legal. “Estamos em conflito com o Irão desde 1979.” É pouco.

 

Outro aspeto em que este caso se diferencia dos anteriores, foi no assumir público e publicitado da ação, pelo governo americano. Contrariamente a todos os outros relatados, em que ninguém se chegou à frente para reclamar a autoria, desta vez o próprio Presidente o confirmou.

Isto é uma novidade que vai alterar até o relacionamento entre os EUA e Israel. Se até aqui as administrações americanas tinham preocupações sobre o que as ações de Israel, unilateralmente, poderiam provocar na região, podendo acabar por arrastarem os EUA para um conflito, agora, são os israelitas que se passam a preocupar sobre as consequências de uma escalada americana na região.

 

Uma coisa parece ser certa: provavelmente pelo narcisismo de Trump, finalmente retirou-se a máscara sobre estas operações de assassinatos individuais a coberto do anonimato. A partir de agora, todos sabem (apoiando ou não) que o Estado pode utilizar os seus meios para assassinar qualquer pessoa, desde que o mesmo Estado a considere como inimiga. Estrangeiros ou nacionais, governantes ou não. A democracia na sua expressão mais lata. Morte como possibilidade igual para (quase) todos. Nada que já não soubéssemos.

Mas, atenção: não encaremos este desvelar, este estilhaçar da cobertura de proteção utilizada para não vermos o que está por baixo dela, como um produto do narcisismo de Trump. Acima de tudo, trata-se da forma da classe dominante (de que ele é o mais habilidoso representante) nos mostrar, mais uma vez, quem manda, de nos dizer que não temos minimamente de nos pronunciar sobre nada porque não entendemos nada.

 

Também o narcisismo de Henry Miller lhe obscurece a sua visão sobre o geral. Não que este não seja um tempo de assassinos, mas porque quase desde o início, os tempos foram sempre de assassinos. Lembremos Caim e Abel, e outros iguais pares de outras regiões que deram origem a civilizações.

 

 

 

 

  1. (https://archive.org/stream/CIAAStudyOfAssassination1953/CIA%20-%20A%20Study%20of%20Assassination%20%281953%29#mode/2up).
  2. Início do poema: They are murdering all the young men. For half a century now, every day, they have hunted them down and killed them […] (https://genius.com/Kenneth-rexroth-thou-shalt-not-kill-annotated).

 

  1. Ronen Bergman, Rise and Kill First: The Secret History of Israel’s Targeted Assassinations, Random House, New York, 2018.

 

  1. Ver o blog de 19 de abril de 2017, “Matar, com ética”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/no107-matar-mas-com-etica-28952), e o de 16 de novembro de 2016, “Fronteiras indefinidas da guerra”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/as-fronteiras-indefinidas-da-guerra-23353).

 

 

 

 

(547) Tempos de arrasar e salgar

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

Arrasar e salgarera a pena cumulada durante grande parte dos Antigos Regimes.

 

Varsóvia deve ser arrasada, todos os habitantes devem ser mortos, não é permitido nenhum prisioneiro, H. Himmler.

 

Deve ficar claro que não há espaço no país para ambos os povos... ... Não há outra solução, Yosef Weitz.

 

Não há palestinos, porque não há um povo palestino, Bezalel Smotrich ministro das Finanças de Israel.

 

Já ouviu falar de Dresden, PM Starmer? Mike Huckabee, embaixador dos EUA em Israel.

 

 

 

 

 

Públio Cornélio Cipião Emiliano Africano, ás ordens de Roma, após ter vencido a Terceira Guerra Púnica (146 a.C.) arrasou a cidade de Cartago não deixando pedra sobre pedra e salgando depois todo o chão para que nada nele voltasse a crescer.

Esta prática de arrasar tudo aquilo que oferecesse resistência com a intenção de impedir o seu reaparecimento futuro, não constitui uma originalidade de Cipião: há muito se vinha praticando (basta reler, por exemplo, o Antigo Testamento) e continuou a ser utilizada até à atualidade.

 

Por exemplo, recorde-se o processo dos Távoras (1758) em Portugal, em que após a alegada tentativa de assassinato do rei D. José I, além de terem sido torturados e queimados e enforcados e decapitados quase todos os membros da família dos Távora (incluindo mulheres e crianças) e do Duque de Aveiro e seus conhecidos, o palácio do Duque de Aveiro em Lisboa foi arrasado e o terreno salgado para que nunca mais nada ali crescesse. Se um dia forem aos pastéis de Belém em Lisboa, não deixem de visitar ali mesmo ao lado antes do Mosteiro dos Jerónimos, um padrão alusivo mandado erigir por D. José no local do palácio, hoje chamado de Beco do Chão Salgado. Vale a pena ler a inscrição.

Aliás, “Arrasar e salgar” era a pena cumulada durante grande parte dos Antigos Regimes, e que se aplicava a crimes considerados particularmente graves tais como traição à coroa e casos notórios de heresia. Piedosamente, a pena era sempre precedida da execução do condenado.

 

Em 1939, a cidade de Varsóvia, capital da Polónia, tinha mais de milhão e meio de habitantes, 20 teatros, 70 cinemas, imensos restaurantes e hotéis, e preparava-se para organizar os Jogos Olímpicos de 1948 ou 1952.

Com o início da Segunda Guerra a 1 de setembro de 1939, a campanha da ocupação nazi destrói logo nesse ano 10 por cento da cidade. Com o ataque à União Soviética a partir de junho de 1941, a técnica de bombardeamento aéreo em tapete é usada sobre a cidade. Depois, em maio de 1943, devido à resistência oferecida pelos judeus no Gueto de Varsóvia, a destruição do Gueto alcança um máximo.

 A etapa seguinte é a da aniquilação estratégica da cidade que ocorre após o fim da Revolta de Varsóvia: a batalha urbana de dois meses levou a uma destruição substancial, especialmente nos bairros da Cidade Velha, na parte norte do centro da cidade. Após a Revolta, quando os insurgentes e os civis foram deportados da cidade, as unidades alemãs da Verbrennungs-und Vernichtungskomanndo (Destacamentos de Queima e Destruição) iniciaram o seu plano para obliterar o que ainda estava de pé: no Outono e Inverno de 1944/1945, os bairros da cidade foram incendiados, um a um. A fúria da destruição durou até à entrada do Exército soviético na cidade, em meados de janeiro de 1945.

 

Se juntarmos as perdas sofridas na Revolta de Varsóvia, na Campanha de setembro de 1939 e na Revolta do Gueto de Varsóvia, verifica-se que as operações militares destruíram 85% de Varsóvia.

Não havia eletricidade nem água canalizada. Todas as pontes foram destruídas. 90% das instalações industriais, 90% dos edifícios históricos, 70% dos apartamentos, 70% das escolas, 95% das instituições culturais e todas as estações ferroviárias praticamente deixaram de existir.

 

É, contudo, importante realçar que o plano de destruição da capital da Polónia era um sentimento comum já existente entre a liderança nazi desde o início da Segunda Guerra Mundial. Varsóvia era considerada o coração do movimento de resistência polaco e o seu centro cultural, artístico e político. Por isso, os alemães decidiram que Varsóvia precisava de ser degradada para não passar de uma cidade de província.

O projeto urbanístico de Hubert Gross e Otto Nurnberg, de 6 de fevereiro de 1940,  a que se deve acrescentar um outro preparado em 1942 por Friedrich Pabst, arquiteto-chefe nazi de Varsóvia, e que ficaram conhecidos como o Plano Pabst, tinham como objetivo transformar Varsóvia numa pequena cidade alemã de apenas 130.000 habitantes. Os distritos da margem esquerda do rio seriam destinados exclusivamente para a elite alemã (Ostgruppe) de 40.000 pessoas, que ficaria responsável pelos territórios conquistados no Leste, enquanto a margem direita do rio Vístula albergaria um pequeno distrito exclusivo para os polacos que trabalhariam para os alemães. A nova Varsóvia estaria localizada a sul e sudoeste da Cidade Velha, que deveria ser destruída, e o Castelo Real transformado no Parteivolkshalle (Salão do Povo).

 

Durante os julgamentos de Nuremberga, Ludwig Fischer, chefe nazi do Distrito de Varsóvia, declarou em 11 de outubro de 1944:

 

Varsóvia precisava de ser demolida até aos alicerces. Quer dizer, precisava de ser arrasada, mesmo enquanto ainda estivermos em guerra, enquanto quaisquer objetivos militares relacionados com a Fortaleza de Varsóvia* (*nota: fortificar Varsóvia em antecipação do ataque do Exército Vermelho) não estiverem a caminho. Todos os materiais, tecidos e mobiliário precisam de ser protegidos antes que um alvo seja derrubado. A operação é prerrogativa da administração civil. Oficializo-a porque a nova ordem relacionada com a aniquilação de Varsóvia, emitida pelo Führer, é de grande importância quando se trata de novas políticas para a Polónia.”

 

Casas, fábricas e instituições foram esvaziadas. Tudo o que apresentava algum valor foi saqueado e os edifícios foram incendiados. Como consequência, dos 957 edifícios classificados como monumentos, 782 foram totalmente destruídos e 141 parcialmente demolidos.

 

Durante os mesmos julgamentos, o SS-Obergruppenführer Erich von dem Bach-Zelewski, comandante das forças nazis na altura da Revolta de Varsóvia, admitiu ter recebido a seguinte ordem:

 

Todos os habitantes devem ser mortos, não é permitido nenhum prisioneiro, Varsóvia deve ser arrasada e, desta forma, deve ser criado um exemplo intimidante para toda a Europa.

 

E o chefe das SS, Heinrich Himmler, a 17 de outubro de 1944, confirmou:

 

A cidade devia desaparecer completamente da superfície da terra e servir apenas como entreposto de transporte para a Wehrmacht. Nenhuma pedra podia ficar de pé. Qualquer edifício devia ser reduzido aos seus alicerces”.

 

 

Yosef Weitz, chefe do Departamento da Aquisição e Distribuição de Terras da Fundação Nacional Judaica (JNF), criada para colonizar a Palestina através da compra de propriedades árabes para os Yishuv (os imigrantes judeus na Palestina antes de 1948), escreveu em novembro de 1940 – oito anos antes da fundação do Estado de Israel – o seguinte:

 

    “Deve ficar claro que não há espaço no país para ambos os povos... Se os árabes o deixarem, o país tornar-se-á amplo e espaçoso para nós .... A única solução é uma terra... sem árabes. Não há espaço aqui para compromissos ... Não há maneira de transferir os árabes daqui para os países vizinhos ... Nenhuma aldeia deve ser deixada, nem uma tribo ... Não há outra solução.

 

Na atualidade, a linha de pensamento mantem-se:

 

Estamos a lutar contra animais humanos e agiremos de acordo”, disse o ministro da Defesa israelita, Yoav Gallant; “Esta é uma batalha, não apenas de Israel contra esses bárbaros”, diz o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, “é uma batalha de civilização contra a barbárie”.  E “não há palestinos, porque não há um povo palestino”, declara o ministro das Finanças, Bezalel Smotrich.

O mesmo ministro Bezalel Smotrich,  falando a 6 de maio de 2025 numa conferência sobre os colonatos judaicos na Cisjordânia ocupada, anunciou que:

 

Gaza será completamente destruída, os civis serão enviados para... sul, para uma zona humanitária sem Hamas nem terrorismo, e a partir daí começarão a partir em grande número para países terceiros”.

 

Talvez valha a pena recordar também o que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu disse ao presidente Joe Biden sobre as preocupações que este manifestou relativamente à morte impiedosa de civis em Gaza. “Bem, vocês arrasaram a Alemanha. Lançaram as bombas atómicas. Muitos civis morreram”.

 

E recordar ainda a resposta de Mike Huckabee, o embaixador americano em Israel, perante uma declaração do primeiro-ministro britânico Keir Starmer quando este disse que “a decisão do governo de Israel de intensificar ainda mais a sua ofensiva em Gaza está errada”: citando o ataque aéreo dos EUA-britânico a Dresden em fevereiro de 1945, que desencadeou uma enorme tempestade de fogo que incinerou a cidade e seus habitantes, Huckabee twittouJá ouviu falar de Dresden, PM Starmer?

 

 

Entretanto, segundo Chris Hedges, “[…] Israel danificou ou destruiu as universidades de Gaza, agora todas fechadas, e 60% de outras instalações educacionais, incluindo 13 bibliotecas. Também destruiu pelo menos 195 patrimónios, incluindo 208 mesquitas, igrejas e Arquivos Centrais de Gaza, que continham 150 anos de registros e documentos históricos. Aviões de guerra, mísseis, drones, tanques, projéteis de artilharia e armas navais, pulverizam diariamente Gaza – que tem apenas 20 milhas de comprimento e cinco milhas de largura – numa campanha de terra queimada diferente de tudo visto desde a guerra no Vietnam. Lançou 25 mil toneladas de explosivos – o equivalente a duas bombas nucleares – em Gaza, muitos dos alvos selecionados pela Inteligência Artificial. Larga munições não guiadas (“bombas burras”) e bombas destruidoras de ‘bunkers’ de 2000 libras em campos de refugiados e centros urbanos densamente povoados, bem como as chamadas “zonas seguras” – 42% dos palestinos mortos foram atingidos nessas “zonas seguras” onde foram instruídos por Israel a refugiarem-se. Mais de 1,9 milhão de palestinos foram deslocados de suas casas, forçados a encontrar refúgio em abrigos superlotados da UNRWA, corredores e pátios, escolas, tendas ou ao ar livre a sul de Gaza, muitas vezes vivendo ao lado de charcos fétidos de dejetos não tratados.

 

 

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2024
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2023
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2022
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2021
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2020
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2019
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2018
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2017
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2016
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2015
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub