Deram-lhes a escolher ser reis ou mensageiros dos reis. À maneira das crianças, todos quiseram ser mensageiros – o resultado foi que não existem senão mensageiros, Kafka.
Em tempos difíceis e incertos, a procura de refúgio na nostalgia ou no anacronismo, é o que normalmente acontece na moda, Georgina Ripley.
O desenvolver uma atividade frenética para impedir que uma coisa real aconteça, não passa de uma falsa atividade: pensamos estar ativos, mas estamos a ser passivos relativamente à realidade.
Perante uma situação em que “só as moscas mudam”, nada nos obriga a escolher.
Georgina Ripley, curadora chefe de design moderno e contemporâneo no Museu Nacional da Escócia (Edinburgh), observou que a tendência que se vem verificando na moda feminina atual, tendo em vista por exemplo os vestidos exibidos nos principais circuitos badalados como nos Óscares onde proliferaram os despidos atrás, revela que a moda tem a ver não só com a sua própria estética mas com o que se passa no ambiente sociopolítico da sociedade e do tempo em que se vive.
Para Ripley, em tempos difíceis e incertos, a procura de “refúgio na nostalgia ou no anacronismo”, é o que normalmente acontece na moda: os vestidos sem costas apareceram pela primeira vez nos anos trinta do século passado, na época da Grande depressão e da ascensão do fascismo.
Uma empresa de biotecnologia dos EUA modificou geneticamente ratos para terem algumas características do extinto mamute-lanoso. Investigadores da Colossal Laboratories and Biosciences dotaram os seus ratos com a pelagem grossa e despenteada do mamute e com o seu eficiente metabolismo de gordura que o ajudou a sobreviver na Idade do Gelo.
O objetivo da Colossal é introduzir estas características juntamente com outras que foram perdidas devido à extinção do mamute-lanoso nos elefantes modernos, ressuscitando-as.
Desde que foi fundada em 2021 pelo empreendedor Bem Lamm e pelo geneticista da Universidade de Harvard, George Church, a Colossal já arrecadou 430 milhões de euros.
A ideia é libertar posteriormente estes novos-velhos animais talvez na Gronelândia (tudo bate certo) porque parece que ao vaguearem pelo Ártico, ao comprimirem a neve e o musgo que isolam o solo diminuirão o degelo do permafrost e a libertação de carbono, ao mesmo tempo que fertilizam o solo com os excrementos.
Este processo de ressurreição de espécies extintas tornou-se conhecido como “de-extinção”. E se inicialmente não passava de uma simples aspiração ou noção, está hoje assente em tecnologia científicas de topo como a “clonagem” (cloning), a “transferência nuclear de células” (SCNT, somatic cell nuclear transfer), e outras.
Recordemos que uma das primeiras tentativas para trazer de novo à vida animais que já estavam extintos foi a aplicada no início do século XX pelos zoologistas alemães Lutz e Heinz Heck aos bois e vacas com vista a obterem o boi primogénito aurocaense (aurochs, Bos primigenius), utilizando o habitual processo de reprodução seletivo ao contrário, ou seja, em vez de cruzarem animais para obterem um apuramento da espécie, usaram o mesmo processo de cruzamento para obterem uma regressão.
Só após se conseguir isolar e analisar o DNA dos ossos, pelo e outros tecidos de animais mortos é que foi possível pela combinação in vitro reproduzir animais morfologicamente e geneticamente similares aos auroques.
Independentemente das considerações éticas que possam ser levantadas, permanece aquela questão incómoda: criámos em grande parte dos casos as condições para as suas extinções e agora queremos criar as condições para os seus regressos mesmo para aqueles que não têm quaisquer condições de sobrevivência na atualidade?
E aquele medo: se detêm a tecnologia para alterar para trás, não a poderão também aplicar para a frente (que aliás é o que já estão a fazer aos poucos, ver blog de 7 de agosto de 2019, “Pré-viventes ou pré-sobreviventes”)?
Herman Melville, o consagrado autor de Moby Dick, foi também um excelente contador de pequenas histórias, como a que escreveu em 1853, Bartleby, the Scrivener: A Story of Wall Street (Bartlleby, o escriturário: uma história de Wall Street). Sem grande sucesso na altura, este conto publicado no Putnam’s Magazine, é hoje considerado como sendo o precursor da literatura do absurdo, na linha de temas mais tarde desenvolvidos por Franz Kafka. Só que não apenas Kafka não teve qualquer contacto com essa obra, como só depois da sua morte é que este conto de Melville começou a ser conhecido e apreciado. Até nisto temos um absurdo: o de um percursor só “aparecer” depois daquilo de que ele fora precursor.
Bartleby trabalhava como escriturário no consultório de um advogado em Manhattan. Embora inicialmente fosse considerado como um excelente empregado que produzia uma enorme quantidade de trabalho de grande qualidade, quando um dia foi chamado pelo patrão para colaborar no estudo e execução de um documento importante, disse calmamente, sem levantar a voz: “Preferiria não”. A partir daí, o seu rendimento foi diminuindo, até que acabou por não fazer nada. Apesar das várias tentativas de conciliação do advogado, a resposta era sempre a mesma: “Preferiria não”. Despedido, Bartleby não saiu do edifício, passando o dia sentado nas escadas e dormindo à noite na entrada do edifício. Condoído, o advogado tentou demovê-lo daquela posição, chegando até a oferecer-lhe a sua casa para viver. Ao que Bartleby respondia com o irredutível “Preferiria não”. Forçado a sair do edifício, Bartleby acabou por ser preso por vagabundagem. O advogado deslocou-se à prisão para ver se ele estava a ser bem tratado, levando-lhe comida. Quando dias depois lá voltou, Bartleby tinha morrido de fome, tendo preferido não comer.
Muitas das tentativas para a explicação deste texto têm recaído em considerações sobre problemas de depressão clínica, sobre teorias do livre arbítrio e do determinismo, ou ainda sobre as más críticas ou o fracasso de vendas que foram Moby-Dick (1851) e especialmente Pierre (1852), que poderiam ter levado o autor a optar por escrever pequenos contos, começando pelo Bartleby, em que aparentemente se revia. Tudo explicações individuais para aquilo que tem a ver com um problema bastante mais geral e abrangente.
Filosoficamente, a frase irredutível de Bartleby não significa que ele não quisesse copiar ou escriturar, ou que não quisesse deixar o escritório – simplesmente ele preferiria não o fazer. Esta formulação que não é nem afirmativa nem negativa, em que não aceita, mas também não recusa, abre uma zona de indefinição entre o sim e o não, o preferido e o não-preferido.
É Aristóteles que vai comparar o espírito, intelecto ou pensamento puro em potência, a uma tábua (grammatéion) onde nada está ainda escrito (no século quatro a. C., na Grécia escrevia-se a tinta sobre uma folha de papiro, ou mais vulgarmente, sobre uma tabuinha coberta por uma fina camada de cera onde se gravava com um estilete). Mais tarde, a quando da tradução latina das obras de Aristóteles, grammatéion dá origem à tabula rasa, aparecendo em Locke como “folha branca” (“suponhamos que no início o espírito não passava de uma folha branca, virgem de qualquer inscrição, sem qualquer ‘ideia’”).
Estamos assim perante uma tradição filosófica que atribui à escrita a importância de desvendar o pensamento. A utilização da imagem da tábua coberta de cera permitia a Aristóteles tentar explicar o problema da pré-existência do pensamento como ‘pura potência’, e de como ele passaria a ‘ato’ assim que nela se escrevesse. Idealmente, o pensamento não teria qualquer forma (não seria evidentemente uma tábua coberta de cera), porque se o pensamento tivesse já uma forma, ou seja, se já fosse qualquer coisa, tal iria interferir, condicionar a perceção, o entendimento, de qualquer objeto inteligível.
É esta ideia sobre o que é a mais pura potência que leva Aristóteles a concluir que toda a potência de ser ou fazer qualquer coisa terá de ser também a potência de não ser ou de não fazer, porque se toda a potência acabasse por se transformar em ato, acabaria por se confundir com ele. Daí o espírito, o intelecto ou o pensamento puro existir como uma potência de pensar e de não pensar.
Mas o próprio Aristoteles tinha algumas dúvidas: “O problema do pensamento implica certas aporias. O pensamento parece ser o mais divino dos fenómenos, mas o seu modo de existência é problemático. Com efeito, se ele não pensa nada (ou seja, se ele se atém à sua potência de não pensar), que dignidade será essa? É como se estivesse adormecido. Mas, se pelo contrário, ele pensa qualquer coisa em ato, ficar-lhe-á subordinado a partir do momento em que a sua essência não é já um ato de pensamento, mas uma simples potência; deixará de ser a substância mais nobre, uma vez que que a sua excelência lhe virá de ser potência em ato.”
A aporia a que ele se referia tinha, pois, a ver com o facto de o pensamento supremo não poder nem pensar em nada nem pensar alguma coisa, nem permanecer em potência nem passar ao ato, nem escrever nem não escrever. Para ultrapassar esta aporia, Aristóteles elaborou a tese segundo a qual o pensamento se pensa a si próprio, sendo como que uma média entre o não pensar e o pensar qualquer coisa, entre a potência e o ato. O pensamento que se pensa a si próprio não pensa num objeto, nem pensa em nada: pensa uma pura potência (de pensar e de não pensar). De certa maneira, Bartleby, como o escriba que deixou de escrever é o protótipo da tábua de cera onde nada está escrito; é a figura extrema do nada de onde vem toda a criação, do nada como pura potência.
Claro que surge logo outro problema: como é que uma pura potência se pode pensar em ato? Como é que uma tábua de cera, onde nada está impresso, se pode impressionar a ela própria?
Na nossa cultura só muito raramente se assiste a este equilíbrio entre a afirmação e a negação, entre a aceitação e a recusa, o dar e o tirar. Os céticos propunham-se alcançar uma condição de suspensão, que era a condição em que nós não podíamos estar nem negar, nem aceitar nem recusar. Não se tratava de uma condição de indiferença, mas antes de uma experiência de possibilidade ou de potência. De certa forma, a procura de uma abertura luminosa.
Aristóteles já tinha também chamado a atenção para algo muito interessante. Dizia ele: “é necessário que toda a coisa seja ou não seja, que ela será ou não será; contudo, encarando separadamente as duas possibilidades, não poderemos dizer com certeza que uma ou outra sejam necessárias. Por exemplo, se eu disser que amanhã vai haver uma batalha naval ou que amanhã não vai haver uma batalha naval, tal não significa necessariamente que se verifique uma batalha naval ou que ela não se verifique.” Ou seja, só a tautologia (proposição que é impenetrável às condições de verdade, uma vez que são sempre verdadeiras) “amanhã vai haver ou não uma batalha naval” é que é necessariamente sempre verdadeira para além da realização de uma ou da outra possibilidade, ao passo que cada uma das outras duas alternativas possíveis passam a serem contingentes, pois podem ser ou podem não ser. De igual modo, a frase de Bartleby pode ser aplicada a qualquer coisa, podendo ao mesmo tempo ser verdadeira e não verdadeira.
Fica assim completo e aberto o quadro de todas as possibilidades, a tal abertura luminosa de que falavam os céticos. É agora claro que a própria criação, para o ser, tem sempre de conter em si a possibilidade da não criação. E não só no momento da criação, mas em todos os momentos que se lhe seguem. Há sempre a hipótese de uma segunda criação. A interrupção da escritura poderá ser um desses momentos em que se concentra toda a potência de não-ser, ponto de indiferença entre a potência e a impotência.
Talvez agora se consiga compreender melhor Leibniz quando ele nos fala sobre um mausoléu onde estão guardadas séculos e séculos das imagens de tudo aquilo que não foi, mas que poderia ter sido, “os possíveis contidos de toda a eternidade”. E foi desse imenso mausoléu que Deus escolheu o “melhor dos mundos possíveis” que, de vez em quando vem visitar, “para se dar o prazer de recapitular as coisas e de renovar a sua própria escolha”.
Com o seu “preferia não”, Bartleby restitui-nos integralmente o universo infinito da possibilidade, mantendo-o em equilíbrio entre o poder ser e o não poder ser, entre o que vai ser e o que não vai ser, batalha eterna entre os vários “melhores” dos mundos possíveis.
Politicamente, o conceito por detrás da expressão de Bartleby é muito mais do que uma simples resistência ativa ao poder. Bartleby deixa de sonhar com o poder, o que é muito mais radical. O poder, como subordinação de muitos a um, não é algo que exista desligado das coisas e que continuaria a existir independentemente da participação dos súbditos. Ele só persiste através da nossa assistência ativa. Colaboramos com o opressor não por ele ser muito poderoso, mas, exatamente por ele nos parecer poderoso é que o tratamos como tal. Então porque é que lhe obedecemos?
Porque “Os sujeitos obedecem não só devido à coerção física (ou à ameaça dela) e à mistificação ideológica, mas também porque investem libidinalmente no poder”. Ou seja, o poder, o seu exercício, como que provoca um êxtase que envolve não só quem o detém, mas também todos aqueles que não o tendo se sentem bafejados pelos salpicos das ondas de gozo que dele emanam e onde eles se banham, enrolam, rebolam. Como uma adrenalina viciante, é assim que o “poder” os suborna e mantém sob o seu jugo.
O que Bartleby faz é deixar de sonhar com o poder, o que implica dissolver a relação entre as estruturas do poder e o êxtase babado dos que o consentem e promovem. O que Bartleby nos diz é que nos devemos focalizar, não sobre a realidade, mas sobre os nossos próprios sonhos.
O desenvolver uma atividade frenética para impedir que uma coisa real aconteça, não passa de uma falsa atividade: pensamos estar ativos, mas estamos a ser passivos relativamente à realidade. Quando nos desdobramos em manifestações, petições, grandes oratórias, etc., mas simultaneamente entregamos o verdadeiro trabalho de assistência, educação, ajuda, acompanhamento, às inócuas Misericórdias do poder político instituído, não estamos certamente a criar condições que não sejam as da perpetuação de um poder político daltónico. Perante uma situação em que “só as moscas mudam”, nada nos obriga a escolher. É mesmo melhor nada fazer do que contribuir para a reprodução da ordem existente.
Lembremos Kafka nos “Mensageiros”:
“Deram-lhes a escolher ser reis ou mensageiros dos reis. À maneira das crianças, todos quiseram ser mensageiros – o resultado foi que não existem senão mensageiros. Galopam mundo fora gritando-se mensagens que, uma vez que não existem reis, se tornaram sem sentido. Alegrá-los-ia pôr fim à sua existência miserável, mas não se atrevem a fazê-lo, tendo em conta os deveres do seu serviço”.
O problema básico […] não é como os revolucionários chegam ao poder, mas como é que eles passam a ser aceites, não apenas como os novos dirigentes políticos, mas como exemplos e leaders, Gramsci.
A burguesia desenvolve uma cultura hegemónicautilizando a ideologia em vez da violência, da força económica ou da coerção, Gramsci.
O Ocidente dominou o mundo não por causa da superioridade das suas ideias ou valores ou religião […] mas antes pela sua superioridade na utilização da violência organizada. Os ocidentais muitas vezes esquecem este facto; mas os não-ocidentais nunca o esquecem, Samuel Huntington.
No Largo de Santo António da Sé, em Lisboa, há um café/pastelaria que tem à porta uma tabuleta apenas em inglês que adverte para a necessidade de esperar para ser sentado (“Please wait to be seated”), conforme nos relata Fernanda Câncio (DN, 3 de Nov 2024), num interessante artigo intitulado “Please wait to be seated, a Lisboa que só fala inglês e está a violar a lei”:
“Há na capital cada vez mais estabelecimentos que ostentam comunicação exclusivamente em inglês. Dir-se-ia o Algarve dos anos 1980. Se alguém questiona, sai um atónito “qual o problema?”. A ideia, garantem, não é ofender ou afastar os portugueses, até porque “vocês são muito bons em línguas”. Quem diria que é ilegal?”
O nome desse café é “Dear Breakfast”. Tão vulgar em português como “McDonald”, “Starbucks”, “Oracle”, “Netflix”…
“Socialismo” não significa, por muito fundamental que isso seja, apenas a socialização da produção, mas acima de tudo socialização no sentido sociológico do termo, no estabelecimento de novas relações humanas e de estruturas genuinamente populares, com vista à dissolução das barreiras entre o estado e a sociedade civil.
É por ter este entendimento daquilo que socialismo é, que para Gramsci (1891-1937) “a luta para derrotar o capitalismo e construir o socialismo era vista essencialmente como um continuum no qual a transferência atual do poder era apenas um momento”. E mais tarde, isso leva-o a acrescentar:
“O problema básico […] não é como os revolucionários chegam ao poder, muito embora esta questão seja muito importante. É como é que eles passam a ser aceites, não apenas como os novos dirigentes políticos, mas como exemplos e leaders”.
Antonio Gramsci esteve preso de 1926 a 1937, durante os quais escreveu mais de 30 cadernos de apontamentos, os famosos Cadernos do cárcere (PDF 500 pp) que continuam a constituir uma das contribuições mais importantes para a teoria política.
É neles que vai desenvolver a sua teoria da hegemonia cultural, que descreve a forma como o Estado e a classe dominante utilizam as instituições culturais para manter a riqueza e o poder.
Segundo Gramsci, a burguesia desenvolve uma cultura hegemónica utilizando a ideologia em vez da violência, da força económica ou da coerção.
Ou seja, o problema básico que se punha seria o da hegemonia, que tinha de ser conquistada não apenas antes e durante, mas depois da revolução, e que só poderia ser alcançada através da participação das massas e da sua educação consensual, “a escola de uma nova consciência, uma humanidade mais completa para o futuro socialista”.
Para Gramsci, a política era mais do que o exercício do poder, porque as sociedades não eram apenas estruturas de domínio económico ou de força política, pois possuíam uma certa coesão social mesmo quando envolvidas em antagonismos de classe.
Recordemos que após a vitória da revolução Russa e o colapso dos impérios dos Ausburgo e Hohenzollern na Europa central, os teóricos comunistas passaram a acreditar que após o rescaldo da Primeira Guerra Mundial, a tomada do poder pelo proletariado fazia parte da agenda imediata em cada um dos estados dos países imperialistas, porque pensavam que o mundo tinha definitivamente entrado na época histórica da revolução socialista.
Lukács escrevia que se vivia numa “atualidade universal da revolução proletária” determinada pelo estado geral do desenvolvimento do capitalismo, que tinha entrado na sua crise mortal.
Ou seja, confundiam as precondições concretas necessárias para uma situação revolucionária com a afirmação abstrata do caráter revolucionário do tempo, da época em si. Daí preconizarem como tática a seguir a ação armada parcial contra o estado capitalista.
Era a teoria da “ofensiva revolucionária”: uma vez que a época era revolucionária, a única estratégia era a da ofensiva, através de uma série de repetidos golpes contra o estado capitalista, que deveriam de ser realizados mesmo se a classe trabalhadora não se encontrasse numa disposição imediatamente revolucionária, servindo nestes casos para “acordarem” o proletariado do seu torpor reformista.
Sabemos o que aconteceu a essa ofensiva revolucionária.
“O Ocidente dominou o mundo não por causa da superioridade das suas ideias ou valores ou religião […] mas antes pela sua superioridade na utilização da violência organizada. Os ocidentais muitas vezes esquecem este facto; mas os não-ocidentais nunca o esquecem”.
A ser assim, o facto de o domínio ocidental estar historicamente enraizado na violência organizada e não na superioridade cultural ou ideológica, mina as alegações de que valores universais como a democracia ou os direitos humanos são os principais impulsionadores da sua influência global.
A afirmação de Huntington explica porque é que as alianças militares globais como a NATO, a aliança "Cinco Olhos", o diálogo de segurança quadrilateral (o Quad) entre os EUA, o Japão, a Índia e a Austrália e as bases militares mundiais, as intervenções armadas na crise da Ucrânia, no Médio Oriente e no Afeganistão, bem como a contenção da China, são parte integrante da estratégia geopolítica dos Estados Unidos no nexo entre as "dimensões internas e externas da sua confiança na violência expansionista organizada como a sua ferramenta de política externa".
Eis George Kennan, um diplomata dos EUA, explanar:
"Temos 50 por cento da riqueza do mundo, mas apenas 6,3 por cento da sua população... Nesta situação, não podemos deixar de ser objeto de inveja e ressentimento. A nossa verdadeira tarefa no próximo período é conceber um padrão de relações que nos permita manter esta posição de disparidade. Deveríamos deixar de falar sobre objetivos vagos e... irreais, como os direitos humanos, a elevação dos padrões de vida e democratização. Não está longe o dia em que teremos que lidar com conceitos diretos de poder. Quanto menos formos prejudicados por slogans idealistas, melhor.”
Qual o pensamento da esquerda social democrata sobre isso? Como atuar?
Como parte do princípio que o sistema é mantido por consentimento e não por coerção, conclui que a principal tarefa dos militantes socialistas não é o combate contra um estado armado mas antes o intentar a conversão ideológica da classe trabalhadora para a libertar da submissão das mistificações capitalistas.
Acredita que apesar da classe trabalhadora ter acesso ao estado (através das eleições), o socialismo só não é alcançado devido à doutrinação a que é submetida pelos meios de comunicação social. E assim vamos votando.
A forma como pensamos é a forma com que os poderosos nos treinaram para pensar.
Aqueles para quem a socialização se acredita dever ser genética, opõem-se a essa socialização.
O ocidental típico habita um universo mental completamente divorciado da realidade. As atrocidades são cometidas apenas por Estados estrangeiros dos quais o seu governo não gosta.
Se perguntarmos à grande maioria dos nossos conhecidos qual é a percentagem atual de afroamericanos (pretos) na população dos EUA, o número mais citado será à volta de 40%, o que de certa maneira é o reflexo que está de acordo com as componentes culturais mais apregoadas, desde a fala coloquial generalizada – com os “bros”(manos) e outros que tais – aos vários apertos de mão – os distintos “take five” em cima e em baixo –o andar bamboleante, os ténis desapertados, os enormes capuchos (hoodies), as canções e danças, aos atletas e desportistas mais nomeados, etc.
Acontece que, segundo o censo de 2022 da ACS (American Community Survey) a população americana rondava os 330 milhões, dos quais os brancos ainda constituíam a maioria com 60%, seguidos pelo grupo dos hispânicos (que não incluem espanhóis) com 19%, só depois vindo o grupo dos afroamericanos (pretos) com 12%, asiáticos com 6%, e nativos americanos índios e do Pacífico com 1%.
Segundo as projeções (a manterem-se as condições atuais), a população branca deixa de ser maioritária dentro de cinco anos, a hispânica crescerá bastante, a africana manter-se-á ou decrescerá, a asiática crescerá ligeiramente.
Alguém gosta de perder a maioria? Que fazer para a manter?
Uma das surpresas que os Democratas tiveram nestas últimas eleições presidenciais, foi o voto dos hispânicos ser fortemente favorável a Trump. Constituído essencialmente por imigrantes, com baixos rendimentos, sujeitos à retórica anti-imigração por parte dos Republicanos, o “normal” para os Democratas seria que votassem por eles.
Não previram que para esses imigrantes paupérrimos o seu Sol era o país capitalista por excelência: os EUA.O eldorado para onde imigravam. E uma vez lá chegados, por mais miseráveis que venham a estar, não querem que mais nenhum dos imigrantes venha. Tal como os trabalhadores das fábricas de armamento (e outros) não querem que as guerras acabem, não querem que as “suas” fábricas fechem, porque isso lhes garante o emprego. Qualquer resquício de bondade social é inexistente: o indivíduo (eles) acima de tudo.
Aliás, o mesmo se passa nesta Europa cume dos valores sociais: os trabalhadores servem-se de todos os argumentos devidamente explicados e propagandeados pelos seus donos para se oporem à vinda de imigrantes, não lhes vá faltar o emprego, a cultura que tanto os distingue, a segurança, alterar a cor da pele que qual estrela de David os distingue, etc. Aqueles para quem a socialização se acredita devia ser genética, opõem-se a essa socialização, o que democraticamente tem de ser respeitado. Evidentemente, enquanto for necessário. Para esta perceção, jogadores de futebol e outros artistas não contam (o espetáculo fica fora, “o circo” sempre esteve aparte).
Perdidas que foram as eleições para Trump, não tendo por enterro político para quem se voltar, os Democratas e seus apoiantes olham agora com saudade para o reinado Obama. Moralmente exemplar. Um novo velho Messias. “Barack Obama never did anything bad”.
Mas nada disto importa para o democrata médio. Só estão interessados nos sentimentos que Barack Obama lhes fez sentir em relação à sua fação política favorita. É apenas nisso que foram treinados para se concentrarem.
O ocidental típico habita um universo mental completamente divorciado da realidade. As atrocidades são cometidas apenas por Estados estrangeiros dos quais o seu governo não gosta. A propaganda é algo que só acontece com pessoas de outros países ou com pessoas com ideologias políticas diferentes. Os escândalos são quaisquer controvérsias que os meios de comunicação imperiais decidam focar e inflamar. As coisas reais que estão a acontecer no nosso mundo não são registadas.
Como diz C. Johnstone, “Isto acontece porque vivemos numa distopia controlada pela mente, onde o pensamento, a fala e o comportamento públicos são agressivamente manipulados por operações psicológicas em grande escala ao serviço dos poderosos. A notícia é propaganda. Os algoritmos de pesquisa são extremamente encaminhados. As plataformas de redes sociais arrebanham-nos em câmaras de eco ideológicas isoladas. Ninguém que desafie significativamente os interesses informativos dos poderosos pode ascender à fama e à influência. Hollywood é apenas uma máquina de relações públicas para o império (veja aqui os 410 filmes feitos debaixo da supervisão do Pentágono).”
A forma como pensamos é a forma com que os poderosos nos treinaram para pensar.
Amplamente noticiado, Trump disse que Zelenski era um “ditador”! E por aí ficamos, ditador não, ditador sim, está ao serviço de Putin, etc. Dos grandes meios de comunicação, nenhum procurou investigar ou enquadrar o acontecido. E era importante.
A pequena história:
Zelenski rejeitou o que considerou ser uma “oferta” de chantagem de Trump para obter 50% de todos os rendimentos futuros da Ucrânia a partir dos seus recursos. (Relembremos que oferecer aos EUA acesso aos recursos ucranianos constava do “plano de vitória” de Zelenski). Assumiu também uma posição hostil em relação às conversações com a Rússia e disse que não aceitaria os seus resultados.
E fez mais: imediatamente antes das negociações EUA-Rússia, os militares ucranianos atacaram interesses dos EUA na Rússia, a saber, um complexo petrolífero (Kropotinskaya Pumping Station, em Kuban) pertencente a empresas americanas. Tal só podia ter sido feito com autorização de Zelenski.
Acreditando-se Trump como máximo defensor dos interesses americanos, não tardou a responder à que efetivamente fora uma provocação, e na conferência de imprensa seguinte não se coibiu de dizer que Zelenski era “um ditador sem eleições” que tinha falhado ao evitar uma guerra que “não podia ser ganha” e que agora recusava conversações para a paz.
Se quiserem uma resposta mais diplomática, podem encontrá-la na conferência de imprensa do Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergey Lavrov.
Tão mal que se dão. Tão pouco elegantes. Mas acabaremos por os ver a todos sorridentemente sentados à mesma mesa, elogiando-se mutuamente. A nós cabe-nos enviar os nossos filhos para a guerra. “Os que vão morrer te saúdam!”
Parafraseando Henry Miller (The Times of the Assassins), os monstros estão soltos, vagueando pelo mundo, fugiram do laboratório, estão ás ordens de quem quer que tenha a coragem de os contratar.
Notas:
É no blog de 10 de maio de 2017, “A ordem natural do negócio”, que refiro que quando foi do Katrina (Nova Orleães), “todas as informações, relatórios, imagens de televisão que descreveram a violência que se instalou, deram origem a histórias que circularam e chegaram a todos os lares. Subjacente a todas elas, muito embora fossem verdadeiras, encontrava-se sempre um elemento patológico e racista, para que no fim se pudesse dizer: “Veem? Os pretos são assim!”.
Como diz Zizek, trata-se de “mentir a coberto da verdade”. Ou seja, ainda que o que se diga seja verdadeiro, os motivos porque o faço são falsos.”
Mais à frente, pergunto: “Será que os seres humanos são de si racistas, xenófobos, antissemitas, ou será que temos sido conduzidos perante um processo de ‘domesticação’ (dir-se-á hoje ‘formatação’) social?”
Exemplifico com a tomada do poder pelos nazis em 1933, em que grande parte dos intelectuais e professores universitários se manifestaram, agradecendo a Hitler por ter livrado a Alemanha da tripla ameaça da revolução russa, da decadência cultural e do declínio económico […] Heidegger diz:
“Não são proposições e conceitos que garantem as leis do Ser. Apenas o Führer e só ele é a Realidade na Alemanha hoje e no futuro”.
D. Vance (e outros), querem tentar convencer o mundo que os seus modelos de IA fechados e por eles monopolizados, e que incluem uma camada de censura nos EUA, são o único caminho viável.
A IA deve permanecer livre de preconceitos ideológicos, J. D, Vance.
A IA é uma “arma perigosa nas mãos erradas, mas é uma ferramenta incrível para a liberdade e a prosperidade nas mãos certas”, idem.
As mãos certas são os Estados Unidos da América, idem.
A DeepSeek, ao ser um modelo de código aberto, pode ser replicada sem implantar a sua camada de censura chinesa.
Na cimeira sobre Inteligência Artificial que recentemente ocorreu em Paris, o vice-presidente dos EUA, JD Vance, veio tentar impor a adoção exclusiva dos modelos de IA (fechados) que os EUA monopolizam.
O seu bem articulado discurso (que pode ver aqui) mostra claramente que para os EUA a IA é uma ferramenta geopolítica que pretendem utilizar como uma arma.
A IA é uma “arma perigosa nas mãos erradas, mas é uma ferramenta incrível para a liberdade e a prosperidade nas mãos certas”.
As mãos certas serão "os Estados Unidos da América que são os líderes em IA e a nossa administração planeia mantê-la assim".
Para o fazer, os EUA continuarão a restringir o acesso a “todos os componentes de toda a produção de IA” para “garantir que os sistemas de IA mais poderosos sejam construídos nos EUA”. Os EUA “fecharão todos os caminhos para impedir que os adversários consigam alcançar capacidades de IA” com o mesmo nível dos EUA.
Seria “um erro terrível para os seus próprios países” se eles “apertassem as porcas das empresas tecnológicas dos EUA”.
À assembleia, essencialmente composta por muitos dos líderes mundiais, disse para desistirem dos seus esforços para a adoção de uma abordagem multilateral colaborativa à IA (no entanto, os EUA foram o único país, com o Reino Unido, que não assinou a declaração de encerramento na cimeira).
Explicou ainda à assistência que precisarão da energia dos EUA para alimentar a IA e ridicularizou os esforços que têm feito para tentarem ser autossuficientes em termos energéticos.
Além disso, elucidou que “a IA deve permanecer livre de preconceitos ideológicos”, o que significa que deve difundir uma ideologia com a qual se sinta confortável (e todas as outras são “tendenciosas”). Experimentem perguntar à IA chinesa sobre Tiananmen.
Conclusão: A IA americana é que é boa, não tendenciosa, não vale a pena tentarem outra nem que seja por não possuírem energia própria suficiente para o fazer, e que deve, portanto, ficar nas “boas mãos” americanas.
Mas será assim?
Se acredita que os modelos de IA dos EUA estão isentos de preconceitos ideológicos, pergunte a uma interfaceOpenAI sobre o conflito no Médio Oriente e o papel desempenhado pelo governo de Israel. A resposta será um disparate com pouca relação com as realidades históricas. Ou sobre as armas nucleares no Iraque, ou o ataque aos navios americanos em Tonquim, ou …
Mas também de igual modo, um modelo da DeepSeek alojada na China evitará responder a perguntas sobre o acontecimento de 1989 na praça Tiananmen. A grande diferença é que a DeepSeek ao ser um modelo de código aberto, pode ser replicada sem implantar a sua camada de censura chinesa.
O cientista de computadores americano Peter Lee, experimentou e verificou os resultadosda DeepSeek. Indignado com a cruzada em curso contra a DeepSeek da China, escreveu:
O esforço mais cínico para combater a DeepSeek foi a ressurreição daquele fiável perene que ataca a China: Tiananmen!
Tipo, a DeepSeek não iria apresentar resultados de uma tarefa no massacre de Tiananmen. Mentira vergonhosa!
Bem, que vergonha para o New York Times, para o Bloomberg, para o Wall Street Journal e para o The Guardian por acolherem e prosseguirem com esta mentira – um sinal, penso eu, de que a ordem veio do alto para implantar a wunderwaffe de Tiananmen, a fim de atenuar o apelo desta grande vitória do soft power (poder suave) e do poder tecnológico chinês.
É mentira porque, como os principais meios de comunicação do G7 sem dúvida sabiam bem, apenas as consultas feitas ao próprio servidor da DeepSeek na China produziriam este resultado. Com a IA do DeepSeek instalada em todo o mundo, a DeepSeek fora da China regurgitará alegremente a triste história de Tiananmen em 1989.
Na transcrição, encontrará uma captura de ecrã do resultado que o DeepSeek R1 entregou para a minha consulta sobre o Massacre de Tiananmen através de um serviço baseado nos EUA, o Perplexity. Tem descrições, números de vítimas e até o precioso Homem do Tanque está lá!
Vance, Musk e outros ainda estão a tentar convencer o mundo de que os seus modelos fechados e monopolizados de IA, que incluem uma camada de censura nos EUA, serão o único caminho viável.
A concorrência, no entanto, resumir-se-á à utilidade e ao preço. É aí que os modelos chineses estão destinados a vencer:
Os Estados Unidos continuam agarrados ao pensamento de “pequeno pátio com muros altos”. O código fechado é o pensamento dominante. Por um lado, controla a direção e a velocidade do desenvolvimento da inteligência artificial e, por outro lado, monopoliza os benefícios económicos da inteligência artificial.
Mas com alternativas de código aberto e de baixo custo, o “muro alto do pátio” pode tornar-se um beco sem saída, pelo menos um ramal.
Uma vez que as melhores tecnologias de código aberto vêm da China, a comunidade de desenvolvimento dos EUA construirá os seus sistemas baseados nestas tecnologias e tornar-se-á parte do ecossistema de inteligência artificial liderado pela China. A atividade e a inclusão do código aberto irão expandir ainda mais a influência do ecossistema de inteligência artificial, fazendo da China o centro das novas tecnologias no mundo - este é um enorme perigo para a hegemonia americana.
A IA de código aberto é de facto um perigo para a hegemonia dos EUA no campo da IA, e é por isso que Vance veio tentar assustar amigos e impressionar alguns políticos idiotas da Europa. Bem pode fazê-lo durante o tempo que quiser.
Mas num mercado global livre a solução mais eficiente provavelmente vencerá. Como uma empresa chinesa desenvolveu a DeepSeek e a publicou como um modelo de código aberto, os modelos melhores, mais baratos e mais abertos serão os que irão dominar.
A maior purga de funcionários públicos “desleais” na história dos EUA foi iniciada por John Foster Dulles em 1953.
Em 1946, o Presidente Harry S. Truman assinara a Ordem Executiva 9835, para que a Comissão da Função Pública examinasse os antecedentes de cada funcionário federal atual e a entrar, em busca de provas de “deslealdade”.
Ogoverno tinha todo o direito de despedir funcionários, “sem conceder a esse funcionário qualquer audiência”, Seth Richardson.
Nem um único espião foi descoberto pelo programa.
Pode-se dizer que o caso Hiss, em que Alger Hiss, um alto funcionário do Departamento de Estado dos EUA acabou em 1950 condenado (e posteriormente ilibado em parte) por aparente espionagem a favor da União Soviética, constituiu a ponta do iceberg que levou o Partido Republicano a acusar a Administração Democrata de imprudência na defesa da segurança nacional, por transformar os departamentos do estado em refúgio para espiões e simpatizantes comunistas.
Foi essa “perceção” pública que levou John Foster Dulles a 22 de janeiro de1953, primeiro dia como secretário de Estado, a dizer no discurso de abertura aos novos e futuros colaboradores que, embora fosse ele o seu chefe, não estava ao lado deles, anunciando que a partir daquele dia, esperava não só lealdade, mas também “lealdade positiva”, deixando claro que despediria qualquer pessoa cujo compromisso com o anticomunismo fosse menos do que zeloso.
Assim começou aquela que – até agora – foi a maior purga de funcionários públicos “desleais” na história dos EUA.
Embora o Departamento de Estado tenha sido o ponto zero para as purgas anticomunistas, os agentes do FBI acabaram por vasculhar os ficheiros de milhares de funcionários de todo o governo federal.
E isso porque em abril de 1953, Dwight D. Eisenhower, o primeiro presidente eleito republicano em duas décadas, emitira a Ordem Executiva10450, que deu início a uma musculada campanha para investigar milhares de potenciais ameaças à segurançaem todo o governo.
Nos quatro meses seguintes, 1.456 funcionários federais foram despedidos, apesar de nunca ter sido encontrado nenhum envolvido em espionagem. Muitos foram afastados simplesmente por serem homossexuais, o que a Ordem definia explicitamente como um risco para a segurança. O tenente da Força Aérea Milo Radulovich foi forçado a renunciar à sua comissão simplesmente porque a sua irmã era suspeita de ser comunista. Outros, como o cartógrafo Abraham Chasanow, foram expulsos com base em rumores frágeis de crenças políticas suspeitas.
As purgas políticas generalizadas do início da década de 1950 ainda hoje têm eco. Há setenta anos, o pretexto razoável de caçar agentes soviéticos abriu caminho a uma campanha que durou anos, motivada por teorias da conspiração bizarras, que destruiu inúmeras carreiras, mas pouco fez para melhorar a segurança da América.
Numa época de intensa competição geopolítica, os Estados Unidos afastaram milhares de funcionários valiosos e forçando aqueles que permaneciam a uma conformidade infeliz.
A caça aos funcionários públicos desleais não começou com Eisenhower e Dulles. Após as eleições intercalares de 1946, nas quais os republicanos assumiram o controlo tanto da Câmara como do Senado com uma campanha baseada em ataques anticomunistas, o Presidente Harry S. Truman assinou a Ordem Executiva 9835.
Ordenou que a Comissão da Função Pública examinasse os antecedentes de cada funcionário federal atual e a entrar, bem mais de um milhão de pessoas, em busca de provas de “deslealdade”, um termo que foi deixado ameaçadoramente indefinido. A triagem baseou-se em arquivos de todo o governo, bem como de departamentos de polícia, antigos empregadores e até históricos escolares.
Truman instruiu ainda o seu procurador-geral, Tom Clark, para elaborar uma lista de organizações “subversivas” em que a adesão atual ou anterior a apenas uma delas constituiria uma bandeira vermelha.
Se surgisse algo suspeito no ecrã inicial, mesmo a mais pequena dúvida, o FBI conduziria uma investigação de campo completa, investigando todos os cantos da vida de uma pessoa. Qualquer informação depreciativa ia para um arquivo. Cabia então ao departamento ou agência envolvida decidir o que fazer com o funcionário. Em teoria, isto pode significar disciplina ou transferência, embora na prática a maioria das pessoas que chegaram a este ponto tenham perdido o emprego.
As falhas eram evidentes para qualquer pessoa que dedicasse tempo a ler o pedido em si. Escrevendo no The New York Times, quatro professores de Direito de Harvard temiam que o programa “deixasse passar os verdadeiros culpados, vitimaria pessoas inocentes, desencorajaria a entrada no serviço público e deixaria tanto o governo como o povo americano com uma sensação de ressaca de futilidade e indignidade”.
E foi isso que aconteceu. O primeiro diretor do programa de fidelização, Seth Richardson, insistiu que o governo tinha todo o direito de despedir funcionários, “sem conceder a esse funcionário qualquer audiência”. Num dos casos, James Kutcher, que perdera as duas pernas na Segunda Guerra Mundial, foi despedido da Administração dos Veteranos porque, uma década antes, tinha sido membro do Partido Socialista dos Trabalhadores, uma organização anti estalinista que Clark tinha, no entanto, acrescentado à sua lista de subversivos.
Dezenas de funcionários negros foram sujeitos a investigações invasivas e de assédio porque, fora do trabalho, estavam envolvidos em atividades de direitos civis, que foram consideradas potencialmente subversivas. O mesmo aconteceu com os funcionários pró-sindicalistas.
Durante os seus cinco anos e meio de funcionamento, o programa de fidelização de Truman realizou 4,76 milhões de verificações de antecedentes, incluindo 2 milhões de funcionários atuais e 500.000 novas contratações a cada ano. Os ecrãs resultaram em 26.236 investigações do FBI. Destas, 6.828 pessoas renunciaram ou retiraram as candidaturas e 560 foram demitidas.
Nem um único espião foi descoberto pelo programa. Os seus defensores argumentaram que conseguiram dissuadir potenciais subversivos. Mas provavelmente também dissuadiram muitas pessoas brilhantes e talentosas de se candidatarem, especialmente se se tivessem envolvido em política progressista na faculdade. O mesmo se aplicava aos então atuais funcionários federais: a ordem premiava a submissão e aumentava o preço da expressão individual.
Nas suas memórias, Truman defendeu a lógica por detrás do programa, mas admitiu que era profundamente falho na prática. Considerou o programa o melhor que conseguiu fazer “sob o clima de opinião que então existia”. Aos amigos, admitiu: “Sim, foi terrível”.
Entre os alvos de Truman estavam funcionários governamentais homossexuais e lésbicas, especialmente do Departamento de Estado. No espírito imediato do pós-guerra, a homossexualidade foi associada à fraqueza, à feminilidade e ao progressismo.
No que mais tarde ficou conhecido como Lavender Scare, o Congresso ordenou às agências governamentais – desde o Estado até à Comissão Americana de Monumentos do Campo de Batalha – que investigassem qualquer funcionário suspeito de ser homossexual, uma categoria mal definida que podia significar qualquer coisa, desde o celibato na meia-idade até, paradoxalmente, o “Don Juanismo”, ou um impulso sexual enérgico.
Outro alvo eram também os chamados China Hands, um grupo de académicos e funcionários do Serviço do Estrangeiro com uma profunda experiência na China. À medida que durante a Guerra Civil Chinesa os nacionalistas pró-Ocidente apesar do apoio maciço dos EUA perdiam terreno para os comunistas sob o comando de Mao Zedong, os China Hands recomendavam cautela, argumentando que a vitória de Mao era inevitável e que a política dos EUA poderia explorar as fissuras entre ele e Moscovo. Em retrospetiva, era um conselho sábio – mas após a vitória de Mao em 1949, foi entendido como prova de que as China Hands não só tinham sido “brandas com o comunismo”, mas também tinham sido o núcleo de uma conspiração pró-comunista dentro do Departamento de Estado.
Um a um, os China Hands caíram: diplomatas estimados como John Stewart Service, John Paton Davies e O. Edmund Clubb foram expulsos do Serviço de Relações Exteriores, alguns sob Truman, outros sob Eisenhower. John F. Melby foi demitido simplesmente porque teve um caso com Lillian Hellman, uma dramaturga progressista que se recusou a “citar nomes” perante a Comissão de Atividades Antiamericanas da Câmara.
Os China Hands eram relativamente poucos em número, mas a dizimação das suas fileiras enviou um sinal claro ao resto do establishment da política externa: a dissidência é por sua conta e risco; a retribuição será rápida.
Embora seja impossível quantificar, o custo das purgas anticomunistas dos anos 50 foi claramente enorme e teve repercussões não só nos anos subsequentes, mas ao longo de décadas. Por exemplo, se a experiência não tivesse sido expurgada e a dissidência não tivesse sido punida tão severamente em todo o governo durante o início da década de 1950, cabeças mais sábias poderiam muito bem ter levantado as objeções certas ao anticomunismo míope da América na Ásia Oriental, acima de tudo à sua pressa em intervir no Vietname.
Haverá diferenças entre o que se passou então com a atualidade? O Perigo Vermelho, embora seja hoje agitado como sendo o Perigo Russo, finalmente terminou. O jornalista Edward R. Murrow ajudou a virar a maré, incluindo uma longa reportagem sobre o caso do tenente Radulovich. O Supremo Tribunal em 1956 impôs limites à ordem executiva de Eisenhower. Em meados da década de 1950, os eleitores, satisfeitos com a estabilidade conservadora forjada por Eisenhower, deixaram de apoiar candidatos que concorriam em plataformas radicais. Joseph McCarthy, que durante anos captou a imaginação política americana, viu o seu apoio desmoronar-se em 1954, durante o seu confronto televisivo e imprudente com o Exército dos EUA por causa de um dentista militar alegadamente subversivo. E Eisenhower, apesar – ou por causa – dos seus esforços anteriores, foi capaz de expulsar os conspiradores anticomunistas radicais que, por um breve momento, capturaram a imaginação americana.
Mas não saíram em silêncio. Homens como Alfred Kohlberg, um magnata textil e um dos principais apoiantes de McCarthy, e Robert Welch Jr., o fundador da John Birch Society, viam Eisenhower como um prisioneiro da cabala comunista que esperavam derrotar. Se se mantivessem à margem da política americana, seria ainda assim uma amostra considerável: None Dare Call It Treason, o livro de John Stormer de 1964, que alega a continuação de uma conspiração pró-comunista no topo do governo dos EUA, vendeu milhões de cópias.
Com o tempo, a crença de que a ala liberal da política americana e a burocracia federal eram controladas por um “inimigo interno” tornou-se um teste decisivo para os demagogos da extrema-direita, ligando a era do Pânico Vermelho, através da insurreição de Pat Buchanan dos anos 90, aos dias de hoje. Quando o Presidente Trump declarou uma moratória sobre as despesas federais para erradicar os elementos “marxistas” do governo, baseava-se numa obsessão com 75 anos.
Pode ser tentador dizer que, tal como o Red Scare desapareceu, o mesmo acontecerá com a atual caça a elementos “desleais”. Mas, apesar de todos os paralelos, há uma diferença importante: a lealdade significava então lealdade para com os Estados Unidos; hoje Trump exige lealdade a si próprio e à sua agenda. Mas, se se vir isso de um ponto de vista histórico mais amplo, talvez essa lealdade tenha apenas que ver com a sobrevivência do próprio sistema.
“Doença mortal” – o entorpecimento da alma pelo desespero que leva à degradação moral e física, Søren Kierkegaard.
A mentira permanente é a apoteose do totalitarismo. Já não interessa o que é verdade. Importa apenas o que é “correto”, Chris Hedges.
Quanto pior se torna a realidade, menos uma população sitiada quer ouvir falar dela, Chris Hedges.
O presidente eleito Donald Trump não anuncia o advento do fascismo. Ele é o sintoma, não a doença, Chris Hedges.
A extensão da vitória de Trump é de tal maneira grande que ultrapassa a mera conjuntura de acontecimento local, podendo vir a ser um indicador de uma alargada transformação social latente mesmo fora dos EUA.
Importa, portanto, tentar perceber algumas das suas origens, única forma para nos precavermos, mesmo que sem resultados práticos, do seu futuro anunciado.
Foi o que fez o pensador político americano Chris Hedges ao publicar a 18 de janeiro de 2025 o artigo “How Fascism Came”. Seguem-se excertos:
Ao longo de duas décadas, eu e um punhado de outros - Sheldon Wolin, Noam Chomsky, Chalmers Johnson, Barbara Ehrenreich e Ralph Nader - alertamos que a crescente desigualdade social e a erosão constante das nossas instituições democráticas, incluindo os meios de comunicação social, o Congresso, a organização do trabalho, a academia e os tribunais, conduziriam inevitavelmente a um Estado autoritário ou fascista cristão […]. Não sinto alegria em estar certo.
“A raiva daqueles que foram abandonados pela economia, os medos e preocupações de uma classe média sitiada e insegura, e o isolamento entorpecente que acompanha a perda da comunidade, seriam o estímulo para um movimento de massas perigoso”, escrevi em “American Fascists” em 2007. “Se estes despossuídos não fossem reincorporados na sociedade dominante, se eventualmente perdessem toda a esperança de encontrar empregos bons e estáveis e oportunidades para si e para os seus filhos - em suma, a promessa de um futuro melhor - o espectro de um fascismo na América assolaria a nação. Este desespero, esta perda de esperança, esta negação de um futuro, lançou os desesperados para os braços daqueles que prometiam milagres e sonhos de glória apocalíptica.”
“Trump e o seu círculo de bilionários, generais, idiotas, fascistas cristãos, criminosos, racistas e desviantes morais desempenham o papel do clã Snopes em alguns dos romances de William Faulkner”, escrevi em “America: The Farewell Tour”. “Os Snopes preencheram o vazio de poder do Sul decadente e tomaram implacavelmente o controlo das degeneradas elites aristocráticas esclavagistas. Flem Snopes e a sua família alargada – que inclui um assassino, um pedófilo, um bígamo, um incendiário, um homem com deficiência mental que copula com uma vaca e um parente que vende bilhetes para testemunhar a bestialidade – são representações fictícias da escumalha agora elevada ao mais alto nível do governo federal. Personificam a podridão moral desencadeada pelo capitalismo desenfreado.”
“[…] Deixemos um mundo entrar em colapso, no Sul ou na Rússia, e aparecerão figuras de ambição grosseira a subir da base social, homens para quem as reivindicações morais não são tão absurdas como incompreensíveis, filhos de bushwhackers ou muzhiks vindos de lado nenhum e assumindo o controlo através da sua ultrajante força monolítica”, escreveu Irving Howe. “Tornam-se presidentes de bancos locais e presidentes de comités regionais do partido e, mais tarde, um pouco mais espertos, conseguem chegar ao Congresso ou ao Politburo. Necrófagos sem inibição, não têm de acreditar no código oficial em ruínas da sua sociedade; só precisam de aprender a imitar os seus sons.”
O filósofo político Sheldon Wolin chamou ao nosso sistema de governação “totalitarismo invertido”, um sistema que manteve a antiga iconografia, símbolos e linguagem, mas que entregou o poder às corporações e aos oligarcas. Passaremos agora para a forma mais reconhecível do totalitarismo, dominada por um demagogo e por uma ideologia baseada na diabolização do outro, na hipermasculinidade e no pensamento mágico.
O fascismo é sempre filho bastardo de um liberalismo falhado.
“Vivemos num sistema jurídico de dois níveis, onde as pessoas pobres são assediadas, detidas e encarceradas por infrações absurdas, como a venda de cigarros avulsos – o que levou Eric Garner a ser sufocado até à morte pela polícia de Nova Iorque em 2014 – enquanto crimes de magnitude terrível cometidos por oligarcas e empresas, desde derrames de petróleo a fraudes bancárias de centenas de milhares de milhões de dólares, que destruíram 40 por cento da riqueza mundial, são tratados através de controlos administrativos mornos, multas simbólicas e simples admoestações que dão a estes ricos perpetradores imunidade contra processos criminais”, escrevi em “America: The Farewell Tour”.
A ideologia utópica do neoliberalismo e do capitalismo global é uma vasta golpada. A riqueza global, em vez de ser distribuída de forma equitativa, como prometeram os proponentes neoliberais, foi canalizada para cima, para as mãos de uma elite voraz e oligárquica, alimentando a pior desigualdade económica desde a era dos barões ladrões. Os trabalhadores pobres, cujos sindicatos e direitos foram retirados e cujos salários estagnaram ou diminuíram ao longo dos últimos 40 anos, foram lançados na pobreza crónica e no subemprego. As suas vidas, como Barbara Ehrenreich narrou em “Nickel and Dimed”, são uma emergência longa e cheia de stress. A classe média está a evaporar-se. Cidades que antes fabricavam produtos e ofereciam emprego nas fábricas são terrenos baldios fechados com tábuas. As prisões estão lotadas. As empresas orquestraram a destruição de barreiras comerciais, permitindo-lhes esconder 1,42 biliões de dólares em lucros em bancos estrangeiros para evitar o pagamento de impostos.
O neoliberalismo, apesar da sua promessa de construir e difundir a democracia, destruiu rapidamente as regulamentações e esvaziou os sistemas democráticos para os transformar em leviatãs corporativos. Os rótulos “liberal” e “conservador” não têm qualquer significado na ordem neoliberal, conforme evidenciado por um candidato presidencial democrata que se vangloriou do apoio de Dick Cheney, um criminoso de guerra que deixou o cargo com uma taxa de aprovação de 13 por cento. A atração de Trump é que, embora vil e bufão, troça da falência da charada política.
“A mentira permanente é a apoteose do totalitarismo”, escrevi em “America: The Farewell Tour”:
“Já não interessa o que é verdade. Importa apenas o que é “correto”. Os tribunais federais estão repletos de juízes imbecis e incompetentes que servem a ideologia “correta” do corporativismo e os rígidos costumes sociais da direita cristã. Desprezam a realidade, incluindo a ciência e o Estado de direito. Procuram banir aqueles que vivem num mundo baseado na realidade, definido pela autonomia intelectual e moral. O governo totalitário eleva sempre a brutalidade e os estúpidos. Estes idiotas reinantes não têm filosofia nem objetivos políticos genuínos. Utilizam clichés e slogans, muitos dos quais absurdos e contraditórios, para justificar a sua ganância e desejo de poder. Isto é tão verdade para a direita cristã como para os corporativistas que pregam o mercado livre e a globalização. A fusão dos corporativistas com a direita cristã é o casamento de Godzilla com Frankenstein.”
As ilusões vendidas nos nossos ecrãs – incluindo a persona fictícia criada para Trump em “O Aprendiz” – substituíram a realidade. A política é burlesca, como ilustrou a campanha insípida e repleta de celebridades de Kamala Harris. É fumo e espelhos criados pelo exército de agentes, publicitários, departamentos de marketing, procuradores, argumentistas, produtores de televisão e cinema, técnicos de vídeo, fotógrafos, guarda-costas, consultores de guarda-roupa, preparadores físicos, investigadores, locutores públicos e personalidades do noticiário televisivo. Somos uma cultura inundada de mentiras.
“O culto do eu domina a nossa paisagem cultural”, escrevi em “Império da Ilusão”:
“Este culto contém os traços clássicos dos psicopatas: charme superficial, grandiosidade e autoimportância; necessidade de estímulo constante, tendência para mentir, enganar e manipular e incapacidade de sentir remorso ou culpa. Esta é, obviamente, a ética promovida pelas empresas. É a ética do capitalismo sem restrições. É a crença errada de que o estilo pessoal e o progresso pessoal, confundidos com individualismo, são o mesmo que igualdade democrática. Na verdade, o estilo pessoal, definido pelos bens que compramos ou consumimos, tornou-se uma compensação pela nossa perda de igualdade democrática. Temos o direito, no culto do eu, de obter tudo o que desejamos. Podemos fazer qualquer coisa, até menosprezar e destruir aqueles que nos rodeiam, incluindo os nossos amigos, para ganhar dinheiro, para sermos felizes e para nos tornarmos famosos. Uma vez alcançada a fama e a riqueza, elas tornam-se a sua própria justificação, a sua própria moralidade. Como se chega lá é irrelevante. Quando se lá chegar, estas perguntas já não serão mais feitas.”
O meu livro “Empire of Illusion” começa no Madison Square Garden numa digressão da World Wrestling Entertainment. Eu compreendia que a luta livre profissional era o modelo para a nossa vida social e política, mas não sabia que iria produzir um presidente.
“As lutas são rituais estilizados”, escrevi, no que poderia ter sido uma descrição de um comício de Trump:
“São expressões públicas de dor e de um desejo fervoroso de vingança. As sagas sinistras e detalhadas por detrás de cada luta, e não as lutas em si, são o que leva as multidões ao frenesim. Estas batalhas ritualizadas proporcionam aos que estão amontoados nas arenas uma libertação temporária e inebriante das vidas mundanas. O fardo dos problemas reais é transformado em material para uma pantomima de alta energia.”
Não vai melhorar. As ferramentas para acabar com a dissidência foram consolidadas. A nossa democracia desmoronou há anos. Estamos nas garras daquilo a que Søren Kierkegaard chamou “doença mortal” – o entorpecimento da alma pelo desespero que leva à degradação moral e física. Tudo o que Trump tem de fazer para estabelecer um estado policial nu é carregar num botão. E ele fá-lo-á.
“Quanto pior se torna a realidade, menos uma população sitiada quer ouvir falar dela”, escrevi no final de “Império da Ilusão”, “e mais se distrai com pseudoacontecimentos esquálidos de colapsos de celebridades, mexericos e curiosidades. Estas são as folias trocistas de uma civilização moribunda.”
Governar através do terror produz menos resultados que governar através da manipulação não violenta do ambiente, dos pensamentos e das sensações dos indivíduos, sejam eles homens, mulheres ou crianças, A. Huxley.
Tal como a religião, a droga tem o poder de consolar e compensar, induzindo-nos visões de um outro mundo melhor, oferecendo-nos esperança, fortalecendo a fé e promovendo a caridade.
As drogas fazem parte do arsenal das armas utilizadas pelos Controladores do Mundo para pacificar e distrair os cidadãos da sua existência triste e sem significado.
A monogamia encarada como o “inimigo da civilização” onde a “promiscuidade era a norma”.
Bem interessante é aquela imagem popular do burro a ser convencido a caminhar alternadamente com pau ou com cenoura, porque de certa forma ela encerra em si a nossa visão sobre as únicas possibilidades de movimentação da sociedade: a bem ou a mal.
Em qualquer dos casos, as mentes mais lúcidas até a extrapolam com vista ao futuro, curiosamente sempre através de distopias, ainda que distintas, como foram os casos de Aldous Huxley (1894-1963) com o Admirável Mundo Novo, publicado em 1932, e de George Orwell (1903-1950) com o 1984, publicado em 1948.
Orwell, assentava a sua visão da sociedade do futuro no controle total obtido pela aplicação de penalizações e castigos, apoiado numa burocracia estatal centralizada e disseminada a todos os níveis, que nos escamoteava a verdade escondendo-nos os livros, não nos permitindo aceder à cultura, na tentativa de obter a uniformização de todos os cidadãos.
Já para Huxley, o controle da sociedade do futuro seria feito pela inoculação de doses de prazer através das quais a verdade desapareceria submersa num mar de irrelevância, onde não se necessitaria de esconder os livros porque ninguém os quereria ler, onde a informação não necessitaria de ser escamoteada porque era dada em quantidades tais que já ninguém ligava, ruído de fundo que nos tornava indiferentes, passivos e egoístas, e onde o aparecimento de tiranias era menorizado perante o quase infinito apetite dos homens por outras distrações.
Vinte e seis anos depois de ter escrito o Admirável Mundo Novo, Huxley publica em 1958 o Admirável Mundo Novo Revisitado, onde conclui que:
“À medida que o tempo decorre, tornou-se claro que o controle dos comportamentos indesejáveis através da punição é menos efetivo que o controle dos comportamentos indesejáveis feito através do reforço de recompensas, e que o governo através do terror produz menos resultados queo governo feito através da manipulação não violenta do ambiente, dos pensamentos e sensações dos indivíduos, sejam eles homens, mulheres ou crianças“.
Recordemos, contudo, alguns condicionalismos previstos e seguidos para que esse Admirável Mundo Novo fosse possível. Por exemplo, uma das práticas correntes de controle da sociedade era a utilização da manipulação pré-natal, pela eugenia ou digenia. Todos as crianças eram incubadas em provetas, uns com esperma biologicamente superior para produzirem Betas, Alfas ou Alfas +, que seriam os futuros condutores desse Mundo, e outros com esperma biologicamente inferior, tratados com álcool e proteínas nocivas para retardarem o seu desenvolvimento, que seriam os futuros trabalhadores.
“Estes seriam quase sub-humanos, mas seriam capazes de desempenharem trabalhos não especializados e que, quando devidamente condicionados, com a possibilidade do acesso frequente e gratuito ao sexo oposto, com o acesso constante a espetáculos gratuitos e a doses diárias de Soma (drogas), não representariam qualquer problema para os seus superiores”.
A utilização indiscriminada e doseada de Soma (drogas) que não teriam qualquer efeito “psicológico ou mental”, permitiria “fazer com que todos andassem bem-dispostos, retirando-lhes quaisquer constrangimentos que tivessem no trabalho e na vida familiar, sem com isso sacrificarem a saúde ou reduzirem a sua eficiência […] não constituía um vício privado, sendo antes a essência da Vida, Liberdade e da Via para a Felicidade garantidas na Declaração dos Direitos”.
O Soma era a religião do povo, pois, “como a religião, a droga tinha o poder de consolar e compensar, induzindo-nos visões de um outro mundo melhor, oferecendo-nos esperança, fortalecendo a fé e promovendo a caridade.”
O Soma era parte do arsenal das armas utilizadas pelos Controladores do Mundo para pacificar e distrair os cidadãos da sua existência triste e sem significado.
“A euforia quimicamente induzida funcionava como substituto à satisfação de nos sentirmos livres e criativos […] alterando a química dos cérebros, usando tranquilizantes para acalmar os excitados, estimulantes para entusiasmar os indiferentes, alucinantes para distrair a atenção das misérias dos destroçados.”
Era assim que o sexo aparecia totalmente separado da emoção, funcionando apenas como uma compensação e distração prazenteira, e como indicador de estatuto ou sucesso. Pelo que a monogamia era encarada como o “inimigo da civilização” onde a “promiscuidade era a norma” e o “romance era considerado degenerado”.
A emoção, inteligência e família, eram vistos como travões ao desenvolvimento da individualidade. A escolha deveria ser sempre a de passar mais tempo consigo próprio.
Mas, mesmo este Admirável Mundo não era para todos. Fora desse Mundo onde todos viviam encantadoramente bem, nessa zona de consentimento, existia, noutros terrenos separados por muros eletrificados, uma zona de coerção, uma “reserva” onde viviam os pobres e povos indígenas não condicionados, onde se praticava o casamento e se fazia vida familiar, com “superstições monstruosas” como o Cristianismo e o culto dos antepassados.
Era um lugar onde, segundo os guias turísticos explicavam, “pululavam doenças infeciosas, padres e lagartos venenosos”. Contudo, esses selvagens estavam totalmente domados, como resultado de terem sido sujeitos à tortura e à fome. E não tinham escapatória: os aí nascidos estavam condenados a aí morrerem, seguindo o caminho dos corpos que se viam amontoados jazendo junto à fronteira ao tentarem escalar os muros de contenção.
Na realidade, esse Admirável Mundo só existia porque o consentimento de uns era obtido devido à coerção sempre presente de poderem vir a ser exportados para o outro mundo.
Quando Huxley escreve o Admirável Mundo Novo, situa-o no Estado Mundial de Londres, no ano 2540 (aliás, situa-o no ano AF 632, o que queria dizer 632 anos depois do aparecimento do primeiro modelo do Ford T de Henry Ford, o Ford que tanto o impressionara quando lera o My Life and Work e onde ele explicava o seu sistema de montagem em cadeia que serviria para o funcionamento de tudo).
Ainda lá não chegámos, faltam 400 anos e já quase tudo desse Admirável Mundo Novo está realizado. Daí a nossa felicidade. Além disso, tivemos a sorte de ficar do lado de cá, sermos brancos e homens.
Poderes absolutos de bárbaros que hoje já não acontecem.
O Tratado de Tordesilhas foi um acordo internacional assinado em 1494, celebrado entre o Reino de Portugal e a Coroa de Castela para dividir as terras "descobertas e por descobrir" por ambas as Coroas fora da Europa.
A tradição medieval era a da supremacia política da Santa Sé, que reconhecia a Roma o direito de dispor de todas as terras e dos povos.
Incontestada no mar, a Grã-Bretanha adotou o papel de polícia global, um estado de coisas mais tarde conhecido como Pax Britannica.
A chamada “ordem internacional baseada em regras” visa facilitar um mundo hegemónico, o que implica a substituição do “direito internacional”.
É dos Contos Orientais a história do mandarim dum poderoso reino da China que sempre que saía com o seu enorme séquito para as suas viagens, os súbditos desertavam de todos os locais públicos refugiando-se em casa, e isto porque se ele viesse vestido de amarelo e o seu olhar pousasse sobre um qualquer ou vários deles, os seus guardas lançavam-se de imediato sobre eles e degolavam-nos. Segundo nos dizem, poderes absolutos de bárbaros que hoje já não acontecem.
Há, evidentemente, histórias semelhantes contadas sobre emires de califados árabes, igualmente tidos como bárbaros, só não especificando as cores letais das vestimentas. Contudo, o degolar seguido de esquartejamento ainda hoje é tido como tradição, por vezes praticado em embaixadas.
O Tratado de Tordesilhas foi um acordo internacional assinado na povoação castelhana de Tordesilhas em 1494, celebrado entre o Reino de Portugal e a Coroa de Castela para dividir as terras "descobertas e por descobrir" por ambas as Coroas fora da Europa. Este tratado surgiu na sequência da contestação portuguesa às pretensões da Coroa de Castela, resultantes da viagem de Cristóvão Colombo, que um ano e meio antes chegara ao chamado Novo Mundo, reclamando-o oficialmente para Isabel, a Católica (1474-1504).
O tratado definia como linha de demarcação o meridiano 370 léguas a oeste da ilha de Santo Antão no arquipélago de Cabo Verde. Esta linha estava situada a meio caminho entre estas ilhas (então portuguesas) e as ilhas das Caraíbas descobertas por Colombo, no tratado referidas como "Cipango" e Antília. Os territórios a leste deste meridiano pertenceriam a Portugal e os territórios a oeste, a Castela. O tratado foi ratificado por Castela a 2 de julho e por Portugal a 5 de setembro de 1494.
No contexto das Relações Internacionais, esta assinatura ocorreu num momento de transição entre a hegemonia do Papado, poder até então universalista, e a afirmação do poder singular e secular dos monarcas nacionais – uma das muitas facetas da transição da Idade Média para aIdade Moderna.
Conforme o historiador brasileiro Delgado de Carvalho:
"(...) subsistia ainda a tradição medieval da supremacia política da Santa Sé, que reconhecia a Roma o direito de dispor das terras e dos povos: Adriano IV, papa inglês (1154-59), havia dado a Irlanda ao rei da Inglaterra e Sisto IV as Canárias ao rei de Castela (1471-84). Baseava-se isso, em parte, sobre o fato de um Édito de Constantino ter conferido ao Papa Silvestre a soberania sobre todas as ilhas do globo; ora, isso porque as terras a descobrir eram todas, então, supostas serem exclusivamente ilhas (LIMA, Oliveira. Descobrimento do Brasil. Livro do Centenário (v. III), Rio de Janeiro: 1900 apud: Carvalho, Delgado. História Diplomática do Brasil.)
Entre 1815 e 1914, um período referido como "século imperial britânico" por alguns historiadores, cerca de 26 000 000 km² de território e cerca de 400 milhões de pessoas eram governadas pelo Império Britânico. A vitória sobre Napoleão deixou a Grã-Bretanha sem qualquer rival internacional sério, além do Império Russo na Ásia Central. Incontestada no mar, a Grã-Bretanha adotou o papel de polícia global, um estado de coisas mais tarde conhecido como Pax Britannica.
Durante este tempo, a Europa desfrutou de uma paz relativamente estável, tendo o Império Britânico controlado as principais rotas navais e conquistado uma posição preponderante sobre os mercados estrangeiros, levando o Reino Unido quase a dominar os entrepostos chineses depois das guerras do ópio.
A presença da Marinha Real Britânica ligada à falta de poder dos restantes países europeus deram à Grã-Bretanha vários privilégios sobre o controle das principais rotas comerciais do globo. Bastava a presença da Marinha Real para acabar com qualquer disputa. Ainda no início do século XX, a Marinha Real tinha um poderio maior que quaisquer outras duas forças militares navais combinadas.
A Inglaterra manteve a supremacia económica até o início do século XX. A hegemonia inglesa perdurou desde meados do século XVIII até o final do século XIX. A época que abarca o boom da industrialização ficou conhecido como Pax Britannica.
“A chamada “ordem internacional baseada em regras” visa facilitar um mundo hegemónico, o que implica a substituição do “direito internacional”. Enquanto o direito internacional tenha por base a soberania igual para todos os Estados, a ‘ordem internacional baseada em regras’ defende a hegemonia no princípio da soberania desigual.
A ‘ordem internacional baseada em regras’ é normalmente apresentada como direito internacional acrescido de direito internacional dos direitos humanos, o que em princípio parece bondoso e progressista. No entanto, isto implica a introdução de princípios e regras contraditórias. A consequência é um sistema desprovido de regras uniformes, em que “o poder faz o que é certo”. O direito internacional dos direitos humanos introduz um conjunto de regras para aumentar os direitos do indivíduo, mas a segurança centrada no ser humano contradiz frequentemente a segurança centrada no Estado como fundamento do direito internacional.
Os EUA, enquanto Estado hegemónico, podem então escolher entre a segurança centrada no ser humano e a segurança centrada no Estado, enquanto os adversários devem respeitar estritamente a segurança centrada no Estado devido à sua alegada falta de credenciais democráticas liberais. Por exemplo, a segurança centrada no Estado, enquanto fundamento do direito internacional, insiste na integridade territorial dos Estados, enquanto a segurança centrada no ser humano permite a secessão ao abrigo do princípio da autodeterminação.
Os EUA insistirão, por isso, na integridade territorial em países aliados como a Ucrânia, a Geórgia ou a Espanha, apoiando ao mesmo tempo a autodeterminação em Estados adversários como a Sérvia, a China, a Rússia e a Síria. Os EUA podem interferir nos assuntos internos dos adversários para promover os valores democráticos liberais, mas os adversários dos EUA não têm o direito de interferir nos assuntos internos dos EUA. Para facilitar uma ordem internacional hegemónica, não pode haver soberania igual para todos os Estados.
A construção da ordem internacional hegemónica baseada em regras
O processo de construção de fontes alternativas de legitimidade para facilitar a desigualdade soberana começou com a invasão ilegal da Jugoslávia pela NATO em 1999, sem mandato da ONU. A violação do direito internacional foi justificada pelos valores liberais. Até a legitimidade do Conselho de Segurança da ONU foi contestada, argumentando-se que deveria ser contornado, uma vez que o veto da Rússia e da China ao intervencionismo humanitário foi alegadamente causado pela sua falta de valores democráticos liberais.
Os esforços para estabelecer fontes alternativas de autoridade continuaram em 2003 para ganhar legitimidade para a invasão ilegal do Iraque. O antigo Embaixador dos EUA na NATO, Ivo Daalder, apelou ao estabelecimento de uma “Aliança das Democracias” como um elemento-chave da política externa dos EUA [1]. Uma proposta semelhante sugeria o estabelecimento de um “Concerto de Democracias”, no qual as democracias liberais poderiam agir no espírito da ONU sem estarem limitadas pelo poder de veto dos Estados autoritários [2]. Durante as eleições presidenciais de 2008, o candidato presidencial republicano, o senador John McCain, defendeu o estabelecimento de uma “Liga das Democracias”. Em dezembro de 2021, os EUA organizaram a primeira “Cimeira para a Democracia” para dividir o mundo em democracias liberais versus Estados autoritários. A Casa Branca enquadrou a desigualdade soberana na linguagem da democracia: a interferência de Washington nos assuntos internos de outros Estados era “apoio à democracia”, enquanto defender a soberania do Ocidente implicava defender a democracia [3]. As iniciativas acima referidas tornaram-se a “ordem internacional baseada em regras”. Com uma mentalidade imperialista, existiria um conjunto de regras para o “jardim” e outro conjunto para a “selva”.
A ordem internacional baseada em regras criou um sistema de dois níveis: Estados legítimos e Estados ilegítimos. O paradoxo do internacionalismo liberal é que as democracias liberais exigem frequentemente que dominem as instituições internacionais para defender os valores democráticos do controlo da maioria. No entanto, um sistema internacional durável e resiliente, capaz de desenvolver regras comuns, é imperativo para a governação internacional e para a resolução de litígios entre Estados.
O direito internacional, de acordo com a Carta das Nações Unidas, baseia-se no princípio vestefaliano da igualdade soberana, pois “todos os estados são iguais”. Em contraste, a ordem internacional baseada em regras é um sistema hegemónico baseado na desigualdade soberana. Tal sistema de desigualdade soberana segue o princípio do Animal Farm de George Orwell que estipula que “todos os animais [estados] são iguais, mas alguns animais [estados] são mais iguais que outros”. No Kosovo, o Ocidente promoveu a autodeterminação como um direito normativo de secessão que devia ser priorizado acima da integridade territorial. Na Ossétia do Sul e na Crimeia, o Ocidente insistiu que a santidade da integridade territorial, tal como estipulada na Carta das Nações Unidas, deve ser priorizada em detrimento da autodeterminação.
Regras uniformes substituídas por um tribunal de opinião pública
Em vez de resolver conflitos através da diplomacia e de regras uniformes, existe um incentivo para manipular, moralizar e propagandear, uma vez que as disputas internacionais são decididas por um tribunal de opinião pública quando existem princípios concorrentes. O engano e a linguagem extrema tornaram-se assim comuns. Em 1999, os EUA e o Reino Unido apresentaram especialmente acusações falsas sobre crimes de guerra para legitimar o intervencionismo. O primeiro-ministro britânico, Tony Blair, disse ao mundo que as autoridades jugoslavas estavam “empenhadas num genocídio ao estilo de Hitler, equivalente ao extermínio dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Não é exagero dizer que o que está a acontecer é um genocídio racial.” [4]
A ordem internacional baseada em regras não consegue estabelecer regras unificadoras comuns sobre a forma de governar as relações internacionais, que é a função fundamental da ordem mundial. Tanto a China como a Rússia denunciaram a ordem internacional baseada em regras como um sistema duplo para facilitar os dois pesos e duas medidas. O Vice-Ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, Xie Feng, afirmou que a ordem internacional baseada em regras introduz a “lei da selva” na medida em que o direito internacional universalmente reconhecido é substituído pelo unilateralismo [5]. O Ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergey Lavrov, criticou de forma semelhante a ordem internacional baseada em regras por criar um quadro jurídico paralelo para legitimar o unilateralismo:
“O Ocidente tem vindo a criar múltiplos formatos, como a Aliança Franco-Alemã para o Multilateralismo, a Parceria Internacional contra a Impunidade no Uso de Armas Químicas, a Parceria Global para Proteger a Liberdade dos Meios de Comunicação Social, a Parceria Global sobre Inteligência Artificial, o Apelo à Ação para Reforçar o Respeito pelo Direito Internacional Humanitário – todas estas iniciativas tratam de assuntos que já estão na agenda da ONU e das suas agências especializadas. Estas parcerias existem fora das estruturas universalmente reconhecidas, de modo a chegar a acordo sobre o que o Ocidente pretende num círculo restrito, sem quaisquer opositores. Depois disso, levam as suas decisões à ONU e apresentam-nas de uma forma que de facto equivale a um ultimato. Se a ONU não concorda, uma vez que impor o que quer que seja a países que não partilham os mesmos ‘valores’ nunca é fácil, tomam medidas unilaterais.” [6]
A ordem internacional baseada em regras não consiste em quaisquer regras específicas, não é aceite internacionalmente e não dá ordens. A ordem internacional baseada em regras deve ser considerada uma experiência falhada da ordem mundial unipolar, que deve ser desmantelada para restaurar o direito internacional como um requisito para a estabilidade e a paz.”
[1] I. Daalder e J. Lindsay, ‘An Alliance of Democracies’, The Washington Post, 23 de Maio de 2004.
[2] G.J. Ikenberry e A.M. Slaughter, ‘Forging a World of Liberty Under Law: U.S. National Security in the 21st Century’, Princeton, The Princeton Project on National Security, 2006.
[3] Casa Branca, ‘Summit for Democracy Summary of Proceedings’, The White House, 23 de dezembro de 2021.
[4] N. Clark, ‘Fools no more’, The Guardian, 19 de Abril de 2008.
[5] Global Times, “a ‘ordem internacional baseada em regras’ dos EUA é a ‘lei da selva’ para conter outros: disse o vice FM chinês ao enviado dos EUA”, Global Times, 26 de julho de 2021.
[6] S. Lavrov, ‘Comentários do Ministro dos Negócios Estrangeiros Sergey Lavrov na 29. ª Assembleia do Conselho de Política Externa e de Defesa (CFDP)”, Ministério dos Negócios Estrangeiros da Federação Russa, 2 de outubro de 2021.
Nota: Glenn Diesen é conhecido nos meios académicos como defensor de posições pró-russas, segundo a Wikipedia. Contudo, nem sempre veste amarelo.
O mito como fazendo parte integrante de todas as sociedades humanas.
A Demanda do Velo de Ouro.
Tudo o que me consigo lembraré que o tipo estava a sorrir, R. Fisk.
Estamos a semear o Médio Oriente com dentes de dragão, C. Hedges.
É talvez de Carlos Eduardo de Soveral a definição mais abrangente sobre o que é “mito”, como sendo “narrativa, conto, história, ao princípio oral como a saga, e, como a saga, elaborada por sucessivas gerações, mercê de vários e afins mitologemas que já de si são fruto ou projeção na realidade de uma estrutura cognoscente que em especial vigora em faces primitivas ou primitivo-barbáricas, onde mais se vive tecnicamente despojado e onde, o âmbito do que na Vida é substantivo, mais se sofrem e advertem os impasses e limitações”.
Dela se pode extrair o mito como fazendo parte integrante de todas as sociedades humanas que aí, ao longo de muitos, mas mesmo muitos anos, encontraram uma “racionalidade” própria que lhes permitiu com um entendimento mínimo e, contudo, suficiente sobre o que lhes estava a acontecer, resistir e sobreviver às condições hostis em que viviam.
Um dos ciclos míticos mais importantes oriundos da Grécia Antiga é o que nos dá a conhecer a viagem por mar (e por isso “ultramarina”) do primeiro herói europeu (Jasão) a bordo do seu navio, o Argo (daí os navegadores serem conhecidos por Argonautas), em busca do Velo de Ouro.
Esse longo poema com as suas muitas peripécias (uma casa real com problemas de casamentos e sucessões, um oráculo que prevê a morte do tio usurpador às mãos dum pretendente com uma só sandália, a fuga dos noivos num carneiro mágico voador com velo de puro ouro, a queda ao mar da rapariga – Hela - que morre afogada no estreito do Helesponto – o mar de Hela -, a chegada do irmão à Cólquida no mar Desfavorável – o mar Negro – casamento com a filha do rei, sacrifício do carneiro, guardando-se a pele - o velo de ouro -, o aparecimento de Jasão com uma só sandália a instar o tio usurpador para lhe dar um reino, a promessa deste de que só lhe daria um reino se Jasão trouxesse o velo de ouro retido na Cólquida, a construção do barco mais veloz -Argo – e os companheiros de viagem -os Argonautas, entre eles Hércules, Orfeu, Peleu – o pai de Aquiles-, Castor e Pólux-, chegada à ilha de Lemnos, encontro com as Harpias, as cadelas de Zeus, os Rochedos Movediços em perpétuo movimento, encontro com as Amazonas, o Prometeu amarrado às rochas, finalmente a Cólquida, Medeia a filha do rei apaixona-se por Jasão, arar o campo com os bois com patas de bronze e bafo de línguas de fogo, semear nos sulcos dentes de dragão dos quais brotariam de imediato uma ceara de homens armados que Jasão teria de vencer, o bálsamo de invisibilidade, a traição de Medeia para com a família, a fuga com o velo) e que termina com o regresso dos heróis à Grécia, aparece escrito no século III por Apolónio de Rodes com o título de Demanda do Velo de Ouro.
Eurípides, grande poeta e dramaturgo do século V, vai-lhe acrescentar (Medeia) o posterior relato dos acontecimentos que levaram Jasão e Medeia nesse regresso atribulado.
“Quando uma sociedade é despojada, quando as injustiças que lhe são impostas parecem insolúveis, quando o “inimigo” é todo-poderoso, quando o nosso próprio povo é bestializado como se tratasse de insetos, baratas, “bestas bípedes”, então a mente move-se para além da razão […] Fica fascinada em dois sentidos: pela ideia de uma vida após a morte e pela possibilidade de essa crença fornecer de alguma forma uma arma com mais potencial que a nuclear.
Quando os Estados Unidos estavam a transformar Beirute numa base da NATO em 1983, e a utilizar o seu poder de fogo contra guerrilheiros muçulmanos nas montanhas a leste, os Guardas Revolucionários Iranianos em Baalbek prometiam que Deus livraria o Líbano da presença americana. Escrevi na altura – não inteiramente em tom irónico – que esta seria provavelmente uma batalha titânica: tecnologia dos EUA versus Deus. Quem venceria?
Depois, no dia 23 de outubro de 1983, um bombista suicida solitário dirigiu um camião cheio de explosivos para o complexo da Marinha dos EUA no aeroporto de Beirute e matou 241 militares americanos em seis segundos.... Entrevistei mais tarde um dos poucos fuzileiros navais sobreviventes que viu o bombista suicida. ‘Tudo o que me consigo lembrar’, disse-me, ‘é que o tipo estava a sorrir’”.
Comentando esta situação, comparando-a com a que se vive hoje no Médio Oriente, Chris Hedges, vai escrever a 7 de janeiro de 2025 o artigo “Genocide: The New Normal”, onde se pode ler:
“Estes atos de terrorismo, ou no caso de Gaza, da Cisjordânia, do Líbano e da resistência armada do Iémen, são usados para justificar intermináveis assassinatos em massa. Esta Via Dolorosa conduz a uma espiral mortal global, especialmente à medida que a crise climática reconfigura o planeta e os organismos internacionais, como as Nações Unidas e o Tribunal Penal Internacional, se tornam apêndices vazios.
Estamos a semear o Médio Oriente com dentes de dragãoe, tal como no antigo mito grego, estes dentes estão a surgir do solo como guerreiros enfurecidos determinados a destruir-nos.”
Acontece que, embora esta interpretação de Hedges seja correta, ela não é completa. Quando Medeia dá a Jasão o bálsamo que lhe garante invisibilidade por 24 horas, diz-lhe também que para vencer a safra de guerreiros armados, Jasão teria de lhes atirar uma pedra para o meio do campo. Assim, eles voltar-se-iam una para os outros e atacar-se-iam. Nessa altura, Jasão poderia ceifá-los a todos, o que aconteceu.
Ou seja, os guerreiros foram todos mortos, contrariando as esperanças de Hedges …
Curiosamente, esta é uma das caraterísticas dos mitos: a sua plasticidade, que permite a sua divisão e aceitação em partes, bem como na sua totalidade sempre sem fim. Daí, talvez, a sua permanência quase eterna.
Notas:
Aconselho vivamente o blog de 13 de maio de 2020, “A bondade do homem, a maldade da mulher”, onde o relacionamento de Jasão e Medeia se encontra mais desenvolvido, e onde se pode encontrar referencia à “Máquina Infernal” de Jean Cocteau.
Carlos Eduardo de Soveral, “Mito, Tragédia e História”, Revista de Ciências do Homem da Universidade de Lourenço Marques, Vol. I, Série A, 1969.
O juízo intelectual do Ocidente mostra incapacidade em distinguir factos de desejos, Emmanuelle Todd.
Dado o alegado compromisso do Ocidente com os direitos humanos e a prevenção do genocídio, seria de esperar que países como os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a Alemanha tivessem travado o genocídio israelita, John Mearsheimer.
É bastante provável que um dos gasodutos do Nord Stream abandonado, possa vir a ser ativado, desde que venha a ser comprado pelo investidor americano Stephen Lynch, o que permitiria que as sanções/objeções ocidentais fossem levantadas, TASS.
- A economia dos Estados Unidos está a caminho de um crash e só é suportada por investimento estrangeiro. O défice comercial dos Estados Unidos é um desastre alimentado pelas empresas norte-americanas que empurram os seus empregos industriais para o estrangeiro e destroem a base industrial do país.
Cerca de 10% do consumo industrial dos Estados Unidos depende de bens estrangeiros para os quais não existe um equilíbrio correspondente nas exportações nacionais.
- Os Estados Unidos já não dispõem dos recursos económicos e financeiros para apoiar os seus objetivos de política externa.
- Os Estados Unidos estão a tornar-se uma sociedade não democrática e ultraconservadora dividida entre os muito ricos e o sector dos serviços.
- Os Estados Unidos são economicamente dependentes dos países que detêm os seus títulos e dívidas – China, Japão e Europa. Os EUA necessitam de uma certa dose global para compensar esta dependência, de forma a manter a presença político-militar dos EUA no Velho Mundo. Cada vez mais, o resto do mundo produz para que os Estados Unidos possam consumir.
- Nos Estados Unidos observam-se algumas tendências perturbadoras, como a crescente estratificação baseada em credenciais educacionais e a "obsolescência de instituições políticas irreformáveis".
Em 2024, Todd publica na Gallimard, La Défaite de l’Occident (“A Derrota do Ocidente”), onde, para além de acentuar a queda da liderança americana vai visar particularmente o juízo intelectual ocidental, com a sua incapacidade em distinguir factos de desejos, especialmente no que respeita à guerra na Ucrânia.
P: Defende que a Europa delegou a representação do Ocidente aos Estados Unidos e está agora a pagar o preço. Como acha que esta tendência pode ser alterada?
R: “No estado atual não podemos fazer mais nada. Uma guerra começou. É o resultado desta guerra que decidirá o destino da Europa. Se a Rússia for derrotada na Ucrânia, a submissão europeia aos americanos prolongar-se-á por um século. Se, como acredito, os Estados Unidos forem derrotados, a NATO desintegrar-se-á e a Europa ficará livre.
Mais importante ainda do que uma vitória russa será a contenção do exército russo no Dniepre e a relutância do regime de Putin em atacar militarmente a Europa Ocidental. Com 144 milhões de pessoas, uma população cada vez menor e 17 milhões de quilómetros quadrados, o Estado russo já luta para ocupar o seu território. A Rússia não terá nem os meios nem o desejo de se expandir quando as fronteiras da Rússia pré-comunista forem reconstituídas. A histeria da russofobia ocidental que fantasia sobre o desejo da expansão russa na Europa é simplesmente ridícula para um historiador sério.
O choque psicológico que espera os europeus será perceber que a NATO não existe para nos proteger, mas para nos controlar.”
P: Acha que a Europa deu o passo final para esta subordinação [aos EUA] durante os conflitos nos Balcãs, e especialmente com a questão do Kosovo?
R: “Não, tudo começou na Ucrânia. Durante a guerra do Iraque, depois do Kosovo, Putin, Schroeder e Chirac realizaram conferências de imprensa conjuntas. Isso aterrorizou Washington. Parecia que a América podia ser expulsa do continente europeu. A separação da Rússia da Alemanha tornou-se assim uma prioridade para os estrategas americanos. O agravamento da situação na Ucrânia serviu para esse propósito.
Forçar os russos a entrar em guerra para impedir a integração de facto da Ucrânia na NATO foi, inicialmente, um grande sucesso diplomático para Washington. O choque da guerra paralisou a Alemanha e permitiu que os americanos, na confusão geral, explodissem o gasoduto Nordstream, um símbolo do entendimento económico entre a Alemanha e a Rússia.
É claro que, numa segunda fase, a da derrota americana, o controlo americano sobre a Europa será pulverizado. Alemanha e Rússia voltarão a encontrar-se. Este conflito é, em certo sentido, artificial. O que é natural, numa Europa de baixa fertilidade e com população envelhecida, é a complementaridade entre a indústria da Alemanha e a energia e recursos minerais da Rússia”.
Nota solta:
A agência portuguesa de notícias Lusa, publicou às 20:06 do dia 2 de janeiro de 2025, o seguinte:
Primeiro-ministro eslovaco acusa Zelenski de “sabotar” finanças da UE
"A decisão do presidente Zelenski só beneficia os EUA", acusou o primeiro-ministro eslovaco, após o fim do transporte de gás russo através de gasodutos na Ucrânia.
O primeiro-ministro eslovaco, Robert Fico, acusou esta quinta-feira o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, de “sabotar” as finanças da União Europeia e ameaçou cortar apoios aos ucranianos residentes na Eslováquia. A acusação e a ameaça foram feitas na sequência do fim do transporte de gás russo para a Europa através da Ucrânia.
Fico avançou que a “decisão unilateral” de Zelenski representa uma perda anual de “quase 500 milhões de dólares” para a Eslováquia, receita esta proveniente dos direitos de passagem do gás russo pelo território eslovaco.
“A Bancarrota Moral do Ocidente”
A 26 de Janeiro de 2024, o Tribunal Internacional de Justiça concluiu que era possível argumentar-se de forma plausível que Israel estava a cometer genocídio em Gaza.
A 21 de Novembro de 2024, o Tribunal Penal Internacional emitiu mandados de detenção contra o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, e o antigo ministro da Defesa israelita, Yoav Gallant, por crimes contra a humanidade e crimes de guerra.
A 5 de Dezembro de 2024, a Amnistia Internacional publicou um relatório de 296 páginas em que detalha o genocídio de Israel em Gaza.
A 19 de Dezembro de 2024, a Human Rights Watch publicou um relatório de 179 páginas que detalha o genocídio de Israel em Gaza.
“Dado o alegado compromisso do Ocidente com os direitos humanos e especialmente com a prevenção do genocídio, seria de esperar que países como os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a Alemanha tivessem travado o genocídio israelita.
Em vez disso, os governos destes três países, especialmente os Estados Unidos, sempre apoiaram o comportamento inimaginável de Israel em Gaza. Na verdade, estes três países são cúmplices deste genocídio.
Além disso, quase todos os muitos defensores dos direitos humanos nestes países, e no Ocidente em geral, permaneceram em silêncio enquanto Israel executava o seu genocídio. A grande comunicação social quase não fez qualquer esforço para expor e desafiar o que Israel está a fazer aos palestinianos. Inclusivamente, alguns meios de comunicação importantes até apoiaram firmemente as ações de Israel.
Interrogamo-nos sobre o que se dizem as pessoas no Ocidente que apoiaram o genocídio de Israel ou permaneceram em silêncio para justificar o seu comportamento e para conseguirem dormir descansados à noite.
É bastante provável que um dos gasodutos do Nord Stream abandonado, possa vir a ser ativado, desde que venha a ser comprado pelo investidor americano Stephen Lynch (ou outro similar que se apresente, permitindo assim que as sanções/objeções “ocidentais” fossem levantadas), evidentemente com a concordância da empresa russa que fornece o gás. Um “acordo de cavalheiros” entre oligarcas em vez dos acordos de Minsk.
Entretanto morreram milhares de ucranianos, russos e outros, o gás e o combustível ficaram mais caros, a Europa central quase colapsou economicamente, as empresas de material militar (todas elas) exultam de braço dado com as de energia, e tudo volta aparentemente ao mesmo (embora mais caro, evidentemente).